Como a fase do desenvolvimento lança uma luz no funcionamento da psique de crianças autistas
Antes de pensar em comprar o primeiro tablet versão
infantil para a sua criança de três anos, é fundamental ter consciência do
quanto as brincadeiras de faz-de-conta são imprescindíveis para o
desenvolvimento do ser humano. A brincadeira de faz-de-conta é a atividade
principal e predominante na infância. Ser capaz de fazer uma coisa significar
outra é uma das maiores realizações da criança pequena. Nesse tipo de
brincadeira, a criança finge ser outra coisa ou cria um mundo de fantasia.
É através do brincar com a imaginação, onde um
canudo de papelão vira um foguete na corrida com o amiguinho, ou
travesseirinhos arremessados são uma guerra de nuvens entre irmãos, que a
criança exercita a habilidade de fazer suposições precisas sobre o que os
outros pensam ou sentem, ou que ajuda a prever o que farão. Essa habilidade
está relacionada ao que a psicologia chama de Teoria da Mente (ToM). Adquirir
essa habilidade é fundamental para nossa inserção social, para estabelecer,
manter e ter êxito nas relações sociais.
O termo Teoria da Mente está relacionado com a
metarrepresentação, isto é, a representação de estados mentais de fundamental
importância para o desenvolvimento linguístico. Ela pode ser investigada por
meio de tarefas de falsa-crença, que exigem a compreensão de situações nas
quais se tem um problema que é visto sob diferentes perspectivas: a perspectiva
do indivíduo que está enfrentando o problema, e a do espectador, que está vendo
a situação de fora.
As tarefas de Teoria da Mente de primeira ordem
exigem a compreensão de que "uma pessoa pensa algo", enquanto as de
segunda ordem exigem a compreensão de que "uma pessoa pensa que outra
pessoa pensa algo".
A relação da brincadeira de faz-de-conta com o
desenvolvimento da Teoria da Mente de crianças pequenas também tem sido objeto
de um número significativo de estudos. Pesquisadores observaram que crianças
que brincam de faz-de-conta em suas casas, com mães e irmãos, apresentam uma
melhor compreensão das falsas crenças.
O que aos olhos dos leigos parece ser um
funcionamento de difícil compreensão, na psique das crianças com
desenvolvimento típico, ocorre naturalmente entre os três e seis anos de idade.
Contudo, as crianças com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) podem
desenvolver essa habilidade de forma mais lenta e distinta.
O TEA se caracteriza por prejuízos severos na
interação social e na comunicação e por ausência de atividades imaginativas,
substituídas por comportamentos repetitivos e estereotipados. Por isso, ao
observarmos uma criança autista, temos a sensação de que ela vive ensimesmada.
E de fato vive, ao não conseguir interagir com o outro. O que envolve a Teoria
da Mente e a Linguagem.
Não por acaso, as principais dificuldades que
indivíduos com TEA podem enfrentar devido ao desenvolvimento tardio da Teoria
da Mente são a capacidade de entender sentimentos e pensamentos alheios, entender
que os outros esperam que seu comportamento mude dependendo de onde ou com quem
estão, prever o que as pessoas podem fazer em seguida, interpretar diversos
gestos ou expressões faciais, entender como seu comportamento pode irritar
terceiros, compreender regras sociais e por fim expressar as próprias emoções
adequadamente.
A Teoria da Mente entende que as principais
características autistas resultam da falha nas capacidades de
metarrepresentação, tornando impossível a compreensão dos estados mentais alheios.
Pesquisadores nesse campo sustentam que
pensamentos, emoções e intenções já são expressos e compreendidos nas condutas
explícitas, permitindo a sintonia mútua que funda a sociabilidade humana. Desta
forma, no caso do autismo, antes da instalação de prejuízos na
metarrepresentação, haveria distúrbios precoces na dimensão sensório-motora,
interferindo nos processos de intersubjetividade primária e secundária.
E como esse processo ocorreria em crianças
autistas? Como seria possível identificar esse déficit? Nelas, o déficit na
construção da Teoria da Mente apareceria na escassez de jogos de faz-de-conta e
na dificuldade em usar e entender termos associados a estados mentais.
Helen Mavichian -
psicoterapeuta especializada em crianças e adolescentes e Mestre em Distúrbios
do Desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É graduada em
Psicologia, com especialização em Psicopedagogia. Pesquisadora do Laboratório
de Neurociência Cognitiva e Social, da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui
experiência na área de Psicologia, com ênfase em neuropsicologia e avaliação de
leitura e escrita.
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