Considerações sobre os desafios de uma geração
digital
Há quase duas décadas, em 1996, o Fundo das Nações
Unidas para a Infância (UNESCO) instituiu um grupo de trabalho, integrado por
especialistas, com o intuito de fixar as bases mundiais para a educação do século
seguinte. Da comissão, resultou o estudo Educação: um tesouro a descobrir[1], com
apresentação dos pilares da educação: aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a
viver juntos e aprender a ser. À época, vivia-se a
popularização do computador comercial e a disseminação do primeiro sistema
operacional com interfaces gráficas, o Windows 95, marcando o início da
internet comercial como a conhecemos hoje.
As iniciativas apresentadas no estudo da UNESCO
estão intrinsecamente conectadas, não apenas por sua contemporaneidade, mas
também por meio do pilar do "aprender a fazer" apresentado, o qual
defende que a educação não deve focalizar exclusivamente na preparação
profissional visando à futura entrada no mercado de trabalho. Isso se deve ao
fato de que o modelo predominante, de natureza cognitivo-informativa e voltado
à inovação, tornou obsoleta a concepção tradicional de formação profissional
fixa. Em vez disso, surge a ênfase na competência pessoal, fundamentada em
aspectos como habilidades comunicativas, capacidade de colaboração em equipe,
iniciativa e adaptabilidade em um ambiente em constante transformação,
características centrais do atual contexto industrial.
As aprendizagens fundamentais destacadas na virada
do século pelo documento institucional continuam de extrema relevância para as
crianças e adolescentes do presente, nativos digitais que têm o virtual como o
principal locus para criação e desenvolvimento de suas relações
sociais, para o lazer e para a realização de suas atividades escolares. Para
eles, a transversalidade dos saberes, a necessidade constante de aquisição de
novos conhecimentos e a plasticidade profissional são elementos naturais das relações
profissionais e pessoais das quais fazem parte.
No entanto, a imersão tecnológica, possibilitada
por dispositivos como computadores, smartphones, aplicativos, redes sociais e
jogos eletrônicos que permitem interações em tempo real entre múltiplos jogadores
através de mensagens de texto, áudio e vídeo, vai além de fomentar o
desenvolvimento de diversas competências pessoais e habilidades sociais. Essa
imersão também introduz crianças e adolescentes em um ambiente problemático,
caracterizado por uma série de riscos. Alguns desses riscos derivam das
interações interpessoais que ocorrem nesse cenário, enquanto outros surgem da
relação entre os usuários e as plataformas utilizadas, bem como da manipulação
dos dados pessoais resultante dos serviços, mesmo que gratuitos.
A legislação nacional busca dar conta desse
fenômeno, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, e o Marco Civil
da Internet, de 2014, além de previsões contidas em legislações esparsas.
Contudo, o direito pátrio ainda não consegue fazer frente ao fenômeno
multifacetado e complexo que é a proteção integral de crianças e adolescentes
no ambiente digital. A iniciativa mais recente, a Lei Geral de Proteção de
Dados Pessoais de 2018, abordou o tema de maneira sucinta, indicando que os dados
pessoais de crianças e adolescentes são considerados de natureza sensível e o
tratamento deve ser realizado com base no seu melhor interesse, com foco quase
exclusivo no conceito de consentimento, a ser obtido por parte de pais e
responsáveis e utilizado como fundamento legal para o tratamento de dados
pessoais realizado. A legislação em vigor falha por ser sucinta na abordagem
geral sobre o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, que são
coletados e utilizados em inúmeras situações, em ambiente analógico e digital,
além de não possuir dispositivos específicos destinados à regulamentação de
situações já plenamente inseridas no tecido social, como plataformas
educacionais, jogos eletrônicos, brinquedos inteligentes, criação de contas de usuários
em redes sociais por crianças e adolescentes, entre tantos outros.
Em perspectiva comparada, vislumbram-se diversas as
iniciativas de regulamentação da proteção de dados pessoais de crianças e
adolescentes em ambientes digitais. Nos Estados Unidos, pioneiro na elaboração
de legislação focada na proteção da privacidade de crianças, o Children’s
Online Protection Privacy Act (COPPA) de 1998 foi revisto em 2013 para
adequar-se ao novo ambiente virtual e possibilitar maior controle dos pais e
responsáveis sobre os dados pessoais de crianças coletados online. O Reino
Unido editou em 2019 o “Age Appropriate Design Code” (“Children’s
Code”), um código incidente para aplicativos, sites, videogames,
redes sociais e brinquedos inteligentes que são ou podem ser utilizados por
crianças, com normas que indicam, entre outros, a necessidade de busca por
altos padrões de privacidade em produtos e serviços oferecidos para essa faixa
etária, minimização de coleta e de armazenamento dos dados. Já a Alemanha, em
2021, aprovou alterações na sua Lei de Proteção à Juventude (Jugendschutzgesetzes)
e, dentre as emendas, destacam-se aquelas que determinam que sejam adotadas
configurações que limitem os riscos às crianças e aos adolescentes, com base na
sua idade, e a criação de mecanismos de ajuda e denúncia dentro das próprias
plataformas.
Torna-se cada vez mais crucial a elaboração de uma legislação nacional que esteja à altura desafios decorrentes do uso da internet e de dispositivos conectados online por menores de idade. Indubitavelmente, a aquisição e o aprimoramento das competências pessoais essenciais para cidadãos e profissionais deste século ocorrem principalmente no meio digital e têm início desde tenra idade. No entanto, essa inserção em ambientes virtuais não pode ocorrer sem um modelo de governança estruturado e cuidadosamente planejado para garantir a proteção de seus direitos e interesses. O progresso tecnológico deve ser concebido como uma via para promover a integração social e proporcionar oportunidades de desenvolvimento intelectual; deve, também, ser sempre gerenciado de forma prudente para mitigar os riscos que surgem do tratamento inadequado e excessivo dos dados pessoais de crianças e adolescentes, tendo em vista, sobretudo, seu estágio peculiar de desenvolvimento.
Ricardo Campos - doutor e mestre em Direito pela Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Docente na Goethe Universität Frankfurt am Main. Diretor do Legal Grounds Institute. Coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional. Advogado.
[1] DELORS, Jacques, et. al. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. Brasília: Cortez Editora, 1998, p. 92 s/s, disponível em http://dhnet.org.br/dados/relatorios/a_pdf/r_unesco_educ_tesouro_descobrir.pdf, acessado em 03/08/2023.
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