À esquerda, cultura de parasitas da espécie Crithidia sp LVH60A;
à direita, cultura in vitro de Leishmania infantum
(crédito: Luana Rogerio/UFSCar)
O primeiro caso de manifestação concomitante de leishmaniose visceral e leishmaniose cutânea não ulcerada foi relatado recentemente por pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) no International Journal of Infectious Diseases. Financiado pela FAPESP, o trabalho chama atenção para novos aspectos de uma doença que avança por todo o país.
O paciente, uma criança do sexo masculino atendida no hospital vinculado
à Universidade Federal de Sergipe (UFS), estava infectado pelo
protozoário Leishmania infantum, causador de
leishmaniose visceral, e por outro parasita do gênero Crithidia de espécie ainda não confirmada, que
provoca sintomas semelhantes ao da leishmaniose, em alguns casos mais graves.
Nas Américas, o Brasil é o país mais afetado pela leishmaniose visceral,
tendo como principal agente a Leishmania infantum.
A doença pode ser letal se não diagnosticada ou tratada corretamente. Entre os
sintomas clássicos estão febre, aumento do baço e do fígado e diminuição de
todos os tipos de células sanguíneas (pancitopenia).
Nos últimos anos, com o avanço da genômica, pesquisadores passaram a
observar que pacientes com leishmaniose podem estar coinfectados por outras
espécies de tripanossomatídeos além de Leishmania, como as
dos gêneros Leptomonas e Crithidia, que, a princípio, não são patogênicos ao
homem, ou Trypanosoma (grupo de
protozoários que inclui o causador da doença de Chagas). Geralmente associados
à imunossupressão, casos como esses passaram a ser observados também em pessoas
sem comprometimento imunológico.
Em 2019, o mesmo grupo de pesquisadores descreveu um caso fatal de
doença semelhante à leishmaniose visceral, mas que acreditavam ser causada por
uma nova espécie de parasita do gênero Crithidia –
diferente da já conhecida C. fasciculata, que
parasita apenas insetos (leia mais em: agencia.fapesp.br/31573/).
O relato gerou polêmica na comunidade científica: enquanto as espécies
de Leishmania são dixênicas, ou seja, têm uma fase do
ciclo em que se mantêm no vetor (inseto) e outra no hospedeiro mamífero
(humano), esse outro gênero é considerado monoxênico e sobrevive somente em um
tipo de hospedeiro (geralmente insetos, como o pernilongo comum).
A principal explicação alternativa levantada na época foi a de que
poderia se tratar de um caso de coinfecção: o paciente estaria infectado tanto
com Leishmania infantum quanto com Crithidia, que é uma espécie de fácil crescimento em
condições laboratoriais e, se cultivada juntamente com L. infantum, elimina esta última da cultura.
Foi justamente a ocorrência de coinfecção que os pesquisadores
demonstraram desta vez: o sequenciamento genômico de amostras da medula óssea e
do baço da criança de Sergipe revelou, além de Leishmania
infantum, a presença de Crithidia. Além
disso, a criança teve uma manifestação clínica atípica da leishmaniose visceral
descrita como “leishmaniose cutânea não ulcerada”, que se apresenta como lesões
nodulares na pele, das quais foram isolados parasitas de L. infantum. O paciente, acompanhado entre 2016 e 2020
no Hospital Universitário de Sergipe, apresentou múltiplas recidivas de
leishmaniose visceral refratária aos tratamentos disponíveis, complicações
clínicas, rara manifestação cutânea e passou por esplenectomia (remoção
cirúrgica do baço).
Além disso, resultados do sequenciamento genômico dos parasitas isolados
do paciente sugerem que a espécie de Crithidia encontrada
não é, de fato, a C. fasciculata, mas outra ainda sem
nome definido.
“Esses resultados abrem espaço para uma série de novas hipóteses não só
sobre o gênero Crithidia, mas sobre a própria
leishmaniose”, afirma Sandra Regina Costa Maruyama,
professora do Programa de Pós-Graduação em Genética Evolutiva e Biologia
Molecular (PPGGEv) da UFSCar, pesquisadora do Programa Jovens Pesquisadores
vinculada ao Departamento de Genética e Evolução da UFSCar e coordenadora do
estudo – financiado pela FAPESP por meio de cinco projetos (16/20258-0, 17/16328-6, 19/12142-0, 20/14011-8 e 21/12464-8).
“Qual parasita causou a primeira infecção? O paciente já apresentava um
quadro grave de leishmaniose visceral e por isso se tornou mais suscetível à
essa nova infecção por Crithidia? Uma
infecção primária por Crithidia deixaria
posteriormente o hospedeiro mais suscetível à infecção por L. infantum? Qual seria o vetor de transmissão de Crithidia para os humanos? Estaria o mesmo inseto
vetor coinfectado pelos dois parasitas? No momento, temos muito mais
perguntas do que respostas, por isso a importância de se estudar as infecções
por Crithidia em hospedeiros vertebrados e identificar
os possíveis vetores”, acrescenta.
Maruyama ressalta ainda que estudos recentes sobre metagenômica de
insetos vetores têm mostrado que flebotomíneos (insetos que transmitem a leishmaniose)
carregam diversos microrganismos, como vírus, bactérias e tripanossomatídeos
(entre eles Crithidia).
Novo
alvo para diagnóstico
Geralmente, o diagnóstico da leishmaniose visceral se dá pela
sintomatologia clínica (os sintomas são comuns a várias outras doenças
infecciosas) associada aos aspectos epidemiológicos da doença. A principal
estratégia usada atualmente no SUS é o teste rápido, um método indireto que
detecta no paciente a presença de anticorpos contra a Leishmania e não o próprio parasita.
Apesar de prático, não é altamente específico como os métodos
moleculares, que detectam diretamente a presença do protozoário na amostra. Por
isso, para diferenciar com mais precisão a Leishmania infantum e
a espécie de Crithidia durante a realização
deste estudo, os pesquisadores desenvolveram um método molecular de detecção
específica dessas espécies, que já foi utilizado no artigo recentemente
publicado e será descrito detalhadamente em novo artigo em breve. “Conseguimos
encontrar a mesma espécie de Crithidia em
várias outras amostras de pacientes com leishmaniose visceral”, revela
Maruyama.
Saúde
pública
Além de investigar a possível nova espécie de Crithidia para confirmar se é mesmo um parasita
emergente, capaz de causar impacto no país, o próximo passo do estudo será
investigar o efeito da coinfecção, ou seja, se ela agrava a leishmaniose
visceral.
“Sabe-se que uma pequena parcela dos pacientes que testam positivo para
a infecção por Leishmania de fato desenvolvem
a doença, porém, esses exames são sorológicos e as proteínas dos parasitas são
muito semelhantes, impedindo a distinção completa de qual é a espécie
infectante”, diz Maruyama.
De
acordo com a pesquisadora, se aprofundar no tema e entender esse novo
componente é fundamental em um cenário de avanço da leishmaniose visceral pelo
país. “Se antes a leishmaniose visceral estava concentrada no Nordeste, hoje
casos da doença já são encontrados até no Sul do país. Minas Gerais está num
estado crítico e os especialistas têm nos alertado sobre o avanço da doença no
Estado de São Paulo."
O artigo Co-infection of Leishmania infantum and a Crithidia-related species in a case of refractory relapsed visceral leishmaniasis with non-ulcerated cutaneous manifestation in Brazil pode ser lido em: www.ijidonline.com/article/S1201-9712(23)00563-5/fulltext.
Julia Moióli
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/coinfeccao-por-nova-especie-de-parasita-e-confirmada-em-paciente-com-leishmaniose-visceral/42034/
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