Chuvas acima do normal levaram o rio a se
aproximar do maior nível já medido em 120 anos;
números mostram que cheias extremas são cada vez
mais frequentes e especialistas dizem que agressões ao ambiente vão piorar o
quadro
O
Rio Negro está prestes a alcançar a maior cheia já registrada na história. De
acordo com projeções de especialistas, nos próximos dias o nível das águas
baterá o recorde de 2012, ano da cheia mais extrema desde que o comportamento
do rio começou a ser monitorado, há 119 anos. Chuvas de intensidade muito acima
do normal atingiram toda a Bacia do Rio Negro nesta temporada, contribuindo
para que as águas subissem mais rapidamente - e muito mais cedo, em comparação
a outros anos.
As
consequências sociais e econômicas têm sido graves para as populações de
diversas localidades do Amazonas, que ainda vêm sofrendo os impactos da
pandemia de Covid-19 de forma especialmente severa. Na capital, Manaus, as
inundações atingiram diversos bairros e áreas do centro, incluindo pontos
históricos, como a Praça do Relógio e o prédio da Alfândega, e áreas comerciais
como a Feira Manaus Moderna.
Em
21 de maio, o nível do rio chegou a 29,84 metros - a segunda maior marca da
História, a apenas 13 centímetros do recorde de 2012. Naquele dia, 58 dos 62
municípios amazonenses já estavam alagados e 20 estavam em situação de
emergência – incluindo a capital. De acordo com dados da Defesa Civil, mais de
414 mil pessoas já haviam sido afetadas.
Embora
o aumento do nível das águas seja um processo natural nas bacias dos grandes
rios, os números mostram que as cheias extremas estão ficando cada vez mais
frequentes na Amazônia. Especialistas alertam que pressões ambientais, como o
aquecimento global e o desmatamento em larga escala, tornarão ainda mais comuns
esses eventos climáticos extremos.
As
cheias acima do esperado têm sido mais constantes na bacia Rio Negro, destaca o
meteorologista Renato Senna, do Centro Gestor e Operacional do Sistema de
Proteção da Amazônia (Censipam). "Analisando toda a série histórica, vemos
que o intervalo entre os eventos de cheia extrema são cada vez menores",
frisa.
Os
registros de quase 120 anos do nível da água no porto de Manaus - onde o
Instituto Geológico (CPRM) faz as medições -, mostram que, das dez maiores
cheias, oito ocorreram nos últimos 45 anos, sendo seis delas a partir de 2009.
Essas cheias extremas, segundo Senna, estão sempre associadas a chuvas mais
fortes que o normal. "Fizemos um levantamento das maiores cheias de 1970
em diante e constatamos que elas coincidiam com grandes anomalias nas chuvas
observadas na Bacia do Rio Negro. Nos últimos anos, temos visto um aumento de
frequência desse processo como um todo", afirma.
Senna
explica que a subida anual do rio varia normalmente entre 16 e 29 metros no
porto de Manaus. "O grande problema é que as chuvas nessa época do
ano - entre o fim de maio e começo de junho - caem em forma de pancadas fortes,
muito concentradas. No caso de Manaus, como muitos igarapés foram transformados
ou enterrados (devido à expansão urbana), essas águas se concentram nas partes
baixas da cidade, provocando inundações."
Senna
afirma que a anomalia nas chuvas não abrange toda a Bacia Amazônica da mesma
forma. Ela se concentra na parte da Amazônia ocidental e em parte da Colômbia,
onde se formam os rios Negro e Solimões, que se juntam na região de Manaus,
formando o rio Amazonas. "O Rio Madeira, que também faz parte da Bacia
Amazônica, não está sendo tão afetado. Mesmo o Rio Solimões não foi tão afetado
neste ano como o Rio Negro. Os rios Juruá e Purus, da bacia do Solimões,
porém, foram muito afetados. Já na Amazônia oriental, incluindo o Pará, parte
do Tocantins e do Maranhão, estamos com chuvas abaixo do normal", afirma
Senna.
Mudanças
climáticas. De acordo com
Senna, o que se pode afirmar com certeza é que o aumento das chuvas tem relação
com o resfriamento das águas do Oceano Pacífico produzido neste ano pelo
fenômeno La Ninã. "Tanto no Pacífico como no Atlântico, tivemos uma
redução de meio grau centígrado na superfície do mar em relação ao ano
anterior. Essa variação da temperatura sobre o oceano é um dos principais fatores
que determinam as chuvas na Amazônia. Entretanto, La Niña é um fenômeno natural
que já existia antes da revolução industrial - e por isso é temerário associar
essas cheias diretamente à crise climática", diz.
Mas
Senna complementa: "É muito difícil afirmar que esses fenômenos são
produzidos por mudanças climáticas causadas pelo homem, embora alguns
pesquisadores digam isso categoricamente. Por outro lado, também não há provas
que nos permitam negar essa relação.”
O
aumento da frequência das cheias anômalas na Amazônia ocidental, no entanto, é
coerente com as previsões dos climatologistas de mais de 100 países que compõem
o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, da sigla em inglês),
que atribuem a maior frequência e intensidade dos fenômenos extremos ao
aquecimento global.
O
físico Paulo Artaxo, da Universidade de São Paulo (USP), destaca que “há
indícios suficientes para associar o fenômeno no Rio Negro às mudanças
climáticas globais. A atual cheia recorde do Rio Negro é fruto do aumento dos
eventos climáticos extremos que temos observado na Amazônia, causado pelo
aquecimento global. O número de secas seguidas - em 2005, 2010 e 2015 - e o
número de cheias extremas como essa de 2021 não param de aumentar", diz
Artaxo, que também é membro do IPCC.
As
secas exacerbadas pelas mudanças climáticas têm favorecido o agravamento das
queimadas na Amazônia. Por outro lado, o cientista salienta que as cheias cada
vez mais frequentes são um exemplo dos fenômenos extremos na Amazônia que têm
impactos alarmantes em diversas partes do país, afetando fortemente outros
biomas e a economia.
"Esses
recordes de cheias cada vez mais frequentes mostram claramente os impactos das
mudanças climáticas na Amazônia. Em uma floresta que depende, para seu
funcionamento básico, de temperaturas e chuvas constantes, isso é muito
preocupante. Esses extremos podem comprometer a saúde da floresta e os serviços
ecossistêmicos que ela realiza para o nosso país, e em particular para a
agricultura no Cerrado e no Brasil central", afirma.
Pode
piorar. Os especialistas ouvidos
pela reportagem concordam que esses fenômenos vão se tornar mais frequentes e
severos se a floresta continuar sendo desmatada e queimada e se os processos de
mudança do uso do solo, como a transformação de áreas naturais em pastos,
avançar por regiões ainda preservadas da Amazônia.
"No
caso dos rios Negro e Solimões, a floresta na região de suas cabeceiras está
bastante preservada e não podemos relacionar essas cheias com o desmatamento.
Mas não há dúvida de que um aumento do desmatamento em larga escala iria
agravar ainda mais esses eventos", diz o pesquisador Jochen Schöngart, do
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Segundo
Schöngart, diversos estudos mostram que o desmatamento em larga escala pode
modificar os regimes hidrológicos, especialmente em bacias menores. No rio Tocantins, por exemplo, cientistas
compararam as cheias de dois períodos: quando o desmatamento era limitado e após o desmatamento em larga
escala. Os resultados mostraram que, embora a quantidade de chuvas fosse
semelhante nos dois períodos, após o desmatamento o nível máximo de cheias foi
28% maior e o pico das cheias foi antecipado.
"Isso
acontece porque, após o desmatamento em larga escala, a água não é mais
absorvida pelo solo, nem volta para a atmosfera pela respiração da floresta.
Assim, temos uma quantidade maior de água voltando ao leito do rio",
explica Schöngart.
Com
um grupo de cientistas brasileiros, chilenos e britânicos, Schöngart publicou em 2018, na revista
Science Advances, um estudo
que procurou desvendar os mecanismos por trás do aumento de cheias extremas. "A análise dos 119 anos de registros
constatou, em primeiro lugar, que há um inequívoco aumento desses fenômenos.
Nos primeiros 70 anos dos registros, esses eventos tinham, na média, o tempo de
retorno de 20 anos. Nas últimas décadas, esse tempo médio de retorno é de
apenas quatro anos - e, aparentemente, continua diminuindo", diz.
Mecanismo
complexo. De acordo com Schöngart, o
mecanismo por trás disso é extremamente complexo, com variações entre
interanuais e interdecadais influenciando todo o regime de chuvas. E, por isso,
é tão difícil descartar a hipótese de que se trate de um fenômeno natural.
"Sabemos que o principal elemento no regime de chuvas sobre a Amazônia são
as oscilações climáticas provenientes dos oceanos ao redor - do Pacífico
equatorial, na forma de eventos como El Niño e La Niña, mas também do Atlântico
tropical", afirma.
Segundo
o estudo de 2018, no período entre 1990 e 2015, o Atlântico tropical teve um
forte aquecimento de suas águas superficiais, produzindo muita evaporação. Os
ventos alísios levam essa massa úmida para dentro da Amazônia, especialmente na
época de chuvas, o que resulta no aumento das cheias.
"Como
o Atlântico tropical estava aquecido e o Pacífico equatorial esfriou, por causa
de diferenças na pressão atmosférica sobre os dois oceanos, essas alterações
levaram a uma maior convecção (processo de formação de nuvens por meio da
transferência de calor da superfície para a atmosfera) na Amazônia. Podemos, no
entanto, associar essa dinâmica a uma variabilidade natural, porque a cada três
ou quatro décadas temos uma combinação com essa oscilação decadal, que é mais
frequente no Pacífico e mais prolongada no Atlântico", explica Schöngart.
Por
outro lado, pelo menos um componente desse processo pode ser associado aos
impactos causados pelo ser humano no clima, conforme o pesquisador. "O
cinturão de ventos do Hemisfério Sul entrou mais em direção à Antártica nas
últimas décadas, o que provavelmente está relacionado ao buraco na camada de
ozônio naquele continente. Com essa mudança, o ar quente do Oceano Índico acaba
passando por cima da África e aquecendo ainda mais o Oceano Atlântico”.
Segundo
o professor, as anomalias observadas na bacia do rio Negro são resultado de
complexas interações climáticas entre a floresta e os oceanos - e a modificação
nos ventos do Hemisfério Sul mostram que há pelo menos um componente ligado à
atividade humana. “Temos os três grandes oceanos contribuindo para essa
modificação no ciclo hidrológico. Essas mudanças dos ventos no Hemisfério Sul
estão fortemente associadas ao buraco na camada de ozônio e ao efeito
estufa", diz.
“Consequências
concretas. Apesar da enorme complexidade dos fenômenos climáticos que
afetam as cheias dos rios amazônicos, suas consequências são bem concretas para
as populações da região. Schöngart pontua que esses impactos são diferentes nas
zonas urbanas e nas áreas rurais.
"Nas
regiões rurais, em geral, as pessoas têm moradias adaptadas a esses fenômenos,
como casas flutuantes. O grande impacto para elas é econômico. Essa população
vive em várzeas e, durante a seca, com os peixes concentrados nos lagos,
dedicam-se à pesca. Nas cheias, quando começa a vazante dos rios, preparam a
terra para a agricultura. O problema é que, quando vem uma cheia muito grande,
as águas invadem muito cedo as roças e pastos e o ciclo de pesca, plantio e a
colheita são dramaticamente afetados", afirma.
Já
nas áreas urbanas, o maior impacto é na moradia e nas condições sanitárias das
populações que vivem ao longo dos igarapés. "Com o rio muito cheio, os
igarapés não têm para onde escoar sua água ao serem atingidos pela chuva. Essa
água fica represada e se mistura ao esgoto e ao lixo doméstico e industrial,
invadindo as casas. O acúmulo de água também afeta os poços artesianos e não se
consegue obter água limpa para consumo. Além de perder seus bens e ficar
exposta a problemas de saúde, os moradores dessas áreas também podem ter suas
casas alagadas invadidas por animais perigosos", diz.
Muitas
vezes é preciso abandonar as casas, o que é preocupante, para o pesquisador, em
período de pandemia de Covid-19. "Há risco de que as pessoas se desloquem,
saindo das áreas afetadas e se mudando para casas de parentes que moram em
outros locais. Isso pode levar a um aumento do número de infectados",
afirma.
Impacto
precoce. Luna Gripp Simões Alves,
pesquisadora em Geociências da CPRM que é responsável pelo Sistema de Alerta
Hidrológico do Amazonas (Sipam), explica que muito antes do nível do Rio Negro
chegar próximo ao recorde histórico, os impactos sobre a população amazonense
já eram altos.
"Analisar
as medidas dos níveis dos rios, registrar suas cotas máximas e a magnitude das
cheias é algo extremamente importante para traçar políticas públicas voltadas
para as populações impactadas. Porém, bem antes de chegarmos a esse recorde
histórico os impactos já eram sentidos. Em alguns bairros de Manaus, por
exemplo, quando a água passa de 27,5 metros, já há casas inundadas",
afirma Luna.
De
acordo com ela, a prefeitura de Manaus tem um plano de contingência, que inclui
um cadastro de famílias afetadas para que elas possam obter os recursos do
Aluguel Social. Porém, na difícil situação em que a cidade se encontra por
causa da Covid-19, essa medida está sendo prejudicada. "Mesmo o pessoal
que ia de casa em casa passou a ser deslocado para atender as vítimas da
pandemia", disse.
Há
outras medidas que são postas em prática, como a construção de pontes de
madeira, as chamadas marombas. Em algumas regiões, a população só consegue
transitar em canoas. No Centro de Manaus, a área onde acontece a principal
feira da cidade foi inundada e foi preciso transferir os feirantes para uma balsa.
"Existe
uma certa resiliência por parte da população ribeirinha, que inclui subir o
nível das casas em certos bairros que são afetados muito intensamente. Mas tudo
tem um limite. Dependendo da velocidade da subida da água não dá tempo de
construir essas adaptações. A demanda por madeira fica muito alta e os
moradores, em geral, não têm condições de comprar."
Efeitos
locais. Luna afirma ainda que os
impactos ambientais da ocupação humana na região de Manaus agravam localmente
os efeitos negativos das cheias.
"Essas
cheias que chegam a Manaus são resultado das chuvas nas cabeceiras do rio, na
região da Cabeça do Cachorro e na Colômbia. Temos grandes áreas
impermeabilizadas na cidade e o problema do lixo nos igarapés. Tudo isso piora
a situação, porque no momento da cheia extrema, a água se acumula", diz
Luna.
"Na
região onde o aumento das chuvas está produzindo as cheias, não temos estradas
e o deslocamento é feito por rios. Ainda não há efeitos antrópicos
significativos. No entanto, esses eventos sem dúvida podem ser agravados se
aquelas regiões forem desmatadas. É o que ocorre no rio Xingu, onde os efeitos
do desmatamento são muito nítidos", acrescenta.
Segundo
Luna, ainda não é possível saber se as alterações hidrológicas na bacia do Rio
Negro têm relação com algum efeito da ação humana, mas é certo que há uma
relação com os fenômenos climáticos. "A temperatura global realmente está
aumentando nos últimos anos e, quanto maior a temperatura sobre o oceano,
maiores são os níveis de vapor d'água e, consequentemente, de chuvas",
explica ela.