Este seria o
panorama mais trágico se o Agro colapsasse. Mesmo antes da pandemia do
coronavírus, carro-chefe da Economia nacional esconde dívida de R$ 700 bilhões
Dor, angústia, medo, revolta e fragilização dos
laços familiares são apenas alguns dos sentimentos por trás da supersafra de
250 milhões de toneladas, anunciada aos quatro ventos pelo Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).
Os números das exportações caminham de vento em
polpa, impulsionados especialmente pelas commodities milho, algodão e,
especialmente, soja, cuja participação será superior a 50%.
Entretanto, o brilho dourado do grão ofusca uma
triste realidade compartilhada por milhões de produtores rurais no Brasil, como
é caso do produtor Adilson Érida Borges, que possui fazenda no estado do Mato
Grosso.
De um lado, o produtor aguardava um recorde de
produtividade que não se concretizou. Caminhava para 70 sacas/ha, mas fechou
com 45 sacas/ha. Do outro, há oito anos, briga na justiça para não perder a
propriedade para bancos, com os quais tenta renegociar uma dívida de R$ 4
milhões.
Esse é um problema sério em todo o Brasil e já
vinha sendo ignorado pelo Ministério da Agricultura antes da pandemia do
coronavírus. Segundo um estudo realizado pela Egrégora Consultoria
Empresarial, até janeiro de 2019, o setor devia valor equivalente a uma safra
inteira. “Demonstrativo do Banco Central mostrava uma posição devedora
consolidada do setor junto aos bancos nacionais de R$ 306,8 bilhões”, aponta,
em números absolutos, o diretor da consultoria, Anisio Carossini
,ex-superintendente regional do Banco do Brasil e responsável pela análise.
Somam-se ao montante débitos de R$ 153 bilhões
junto às 60 maiores tradings agrícolas, R$ 53 bilhões em aberto com
cooperativas e outros R$ 100 bilhões devidos a bancos estrangeiros.
Situações críticas
Apesar de ver mais chuva neste ano, as setes
quebras de safra consecutivas registradas no Nordeste, de 2012 a 2018,
praticamente inviabilizaram a continuação de muitos produtores rurais na atividade.
O restante, cerca de um milhão, luta para manter
posse da propriedade. “É uma dívida impagável, porém, nem se discute o
assunto”, denuncia o produtor e deputado em Arapiraca (AL), Chico da Capial.
Ele faz duras críticas à Lei 13.340, criada em
2016, que, simplesmente, ignorou os sete anos de colapso hídrico, ao renegociar
somente as dívidas contraídas até 2011. “Os produtores estão perdendo suas
terras para os bancos”, reclama. Chico da Capial conta que um companheiro de
porteira financiou R$ 18 mil para compra de 18 vacas leiteiras. A dívida já
está em R$ 1,5 milhão.
Ainda sem a iminente alienação fiduciária
generalizada de terras, o Rio Grande do Sul também entra em seu terceiro ano de
estiagem. O estado amargará, até agosto, uma frustração de safra em torno de
50%, com microrregiões superando os 60%.
Não existe um número preciso de produtores gaúchos
falidos, mas há anos o deputado federal Jerônimo Goergen pleiteava atenção no
Mapa. A última investida foi tentar aprovar a Medida Provisória 936 para garantir
R$ 5 bilhões em recursos e flexibilização de dívidas.
Mais ao meio do mapa, o Centro Oeste, onde estão os
maiores produtores de grãos e gado do Brasil, também estão no vermelho.
Goiás é o maior exemplo, responde por 11% do montante total de dívidas: R$ 77
bilhões.
São R$ 42,8 bilhões junto aos bancos e R$ 35
bilhões junto a cooperativas e tradings. Os números são fornecidos por
Eurico Velasco, advogado e pecuarista, vice-presidente da Sociedade Goiana de
Pecuária e Agricultura (SGPA).
Essa ferida, se não estancada, colocará a economia
brasileira em colapso daqui cinco anos, pois o Agro representa 21,4% do PIB
nacional (R$ 1,5 trilhão), de acordo com dados recentes do Centro de Estudos e
Pesquisas Avançadas (CEPEA/USP). “Imagina o PIB do Brasil sem a contribuição de
21% do Agro”, questiona Jeferson da Rocha, advogado, diretor jurídico da
Associação Nacional de Defesa dos Agricultores (Andaterra), ainda alertando que
teremos êxodo de 30% a 40% dos produtores.
Serão de 1,5 a 2 milhões de famílias migrando do
campo para cidades. Pecuária de corte, leite, café, arroz, cana-de-açúcar,
citrus, coco e cacau são os setores mais afetados - alguns deles caóticos.
Perda da terra para
estrangeiros
A questão do endividamento carrega um problema
ainda maior. Conforme execuções avançam, a tendência é de as terras serem
adjudicadas pelos credores ou leiloadas.
Com a sanção da Lei do Agro 13.986 (antiga MP do
Agro), comemorada pelo Ministério da Agricultura como um “marco” na agricultura
brasileira, os artigos 51 e 52 permitem que estrangeiros apropriarem-se dessas
áreas.
Concessão como essa foi vista apenas em 1967, com
repasse de áreas da Amazônia para o magnata norte-americano Daniel Keith
Ludwig, no projeto Jari. Outro ponto questionável da Lei do Agro é a blindagem
excessiva dos credores. As instituições financeiras poderão expropriar o
produtor via cartório, ou seja, sem a necessidade de processo jurídico.
Um paralelo interessante à situação das cartas de
crédito agrícola atuais seriam os financiamentos de automóveis cujo veículo
triplica de valor ao fim do contrato e pode ser arrestado, em caso de atraso
das parcelas.
Raízes do endividamento
A agropecuária é uma atividade de alto risco. É
sujeita a seca, chuva, geada ou granizo. Agricultores podem perder a safra do
dia para noite. Não há segurança.
“O seguro agrícola é caríssimo, está concentrado na
mão de poucos. O subsídio do governo também é irrisório”, avalia o diretor
jurídico da Andaterra.
De acordo com ele, quando há frustração de safra,
muitas vezes demora-se de cinco a dez anos para cobrir o rombo. É por este
motivo que a Lei de Crédito Rural (nº 4.829/65) busca proteger os produtores rurais.
“O produtor é tratado de forma especial porque
produz alimento. Trata-se da segurança alimentar e soberania nacional”, defende
Jeferson Rocha.
A título de informação, a agropecuária brasileira
alimenta 1,5 bilhão de pessoas em todo o mundo.
Infração à Lei de Crédito
Rural
Apesar da legislação vigente limitar taxa de mora a
2,5% ao ano e juros compensatórios de, no máximo, 12% ao ano, além do direito
de a dívida por frustração de safra ser prorrogada nos encargos iniciais (MCR
2.6.9), não é o que se vê nos bancos. “Contratei financiamento com correção de
5,5% ao ano. Na primeira renegociação subiram a taxa para 19,5% e depois de
quatro anos quiseram cobrar de 27% a 33%”, confirma o fazendeiro Antônio Abrão
Zardin.
O produtor tem documentos comprobatórios, entre
comunicados de frustração de safra e recusas do seguro Pro-agro. “Em 300
hectares de feijão acumulei uma dívida de R$ 900 mil. Na safra seguinte tive
quebra por seca e no terceiro ano meu principal cliente quebrou. Não consegui
pagar”, conta.
O produtor condena a arbitrariedade dos bancos, por
concederem seguro apenas às operações de baixo risco - a soja e o milho das
águas - e ainda assim a taxas de 8% a 10% de juros ao ano. Além de recusar as
operações de alto risco, hipotecam a propriedade, prática proibida na Lei de
Crédito Rural.
Na prática, as cédulas de crédito rural (CDRs)
estão sendo convertidas em cédulas de crédito imobiliário (CCIs). “Quem não se
endivida, desse jeito”, indaga o produtor hoje residente no Distrito Federal.
Como consequência, o agropecuarista é induzido a
quitar um financiamento de juros baixos com constantes refinanciamentos de
juros abusivos, operação apelidada de “mata-mata”.
“Na verdade, apenas posterga-se o inevitável, a
quebra da propriedade, mas a conta deste ciclo sem fim de refinanciamentos está
prestes a estourar. E quem vai pagar é o cidadão brasileiro”, adverte o diretor
jurídico da Andaterra.
O “mata-mata” é um aspecto do problema. Outros são
as questões mercadológicas como os cartéis industriais espremendo a margem de
lucro tanto do agricultor quanto do pecuarista, a exemplo da JBS na carne
bovina, grandes laticínios na pecuária leiteira e Cutrale nos citrus.
Para o fazendeiro, é difícil abandonar a produção,
é o que sabe fazer e ainda existe o caráter social a qual a terra agrícola é
submetida. Ficam as dívidas e os traumas. “Minha esposa e meus filhos não
querem saber da fazenda. Toda vida acompanharam o sofrimento em todos os
processos judiciais. Perdi meus sucessores”, desabafa Zardin.
Jabutis nas leis de crédito
agrícola
Não bastasse, as instituições financeiras embutiram
a famigerada alienação fiduciária nas operações de crédito agrícola, uma
negociação muito comum em financiamentos de imóveis e automóveis. “Alienação
fiduciária permite requerer apenas o bem financiado, mas, nas operações
agrícolas, os bancos tomam as próprias fazendas como garantia, ferindo a
legislação”, explica o agricultor Adilson Borges, que, inclusive, teve um
pulverizador arrestado a mão armada por agentes do Banco CNH, em dezembro de
2019.
Segundo ele, ainda existe outro jabuti em relação à
reestruturação de dívidas, que só existe para inglês ver. “Em 2018,
recorri a uma circular do BNDES para reestruturar dívida. Seguraram tanto que
quando saiu a resolução do Banco Central minhas operações já estavam vencidas,
ajuizadas e lançadas em prejuízo. Mesmo com protocolo comprovando que o pedido
havia sido feito ainda sem prejuízo eu fui excluído”, lamenta Borges.
A saída é a securitização
O nó do endividamento agrícola só pode ser desatado
com um plano de securitização, um direito subjetivo do produtor rural. Em
1995 foi utilizada através de lei e, hoje, precisamos de uma nova forma
jurídica que dê direito aos produtores de repactuar essa dívida por 25 anos ou
mais, com juros de até 3% ao ano. “Juros baixos, prazos longos e rebate da
dívida para eliminar todos os cargos ilegais acrescidos ao longo do tempo, além
dos prejuízos gerados pelas manipulações de mercado nos últimos 20 anos,
seriam, no mínimo, justos”, conclui Rocha.
A política agrícola atual privilegia alguns poucos
conglomerados empresariais voltados à exportação de commodities enquanto
pequenos e médios agropecuaristas são subjugados.
Os pequenos e médios também são excluídos das
linhas de crédito emergenciais concedidas pelo Banco Nacional de
Desenvolvimento Social (BNDES), as quais preveem renegociação, prazos alongados
e taxas reduzidas.
Essa seria uma forma de levantar recursos sem
colapsar o orçamento da União, outra solução seria destinar 50% da alíquota do
SENAR a um fundo de securitização, após 30 de junho, quando vence o período
estabelecido pela MP que reduz pela metade a contribuição obrigatória das
empresas ao “Sistema S”.
Em 12 de maio, aconteceria uma audiência pública
para discutir o assunto da securitização, mas, com a situação atual, não tem
mais data prevista.