A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) dará início aos estudos clínicos de
Fase II da vacina brasileira para esquistossomose, chamada de Vacina Sm14, em
etapa realizada em parceria com a empresa Orygen Biotecnologia S.A. A vacina é
um dos projetos de pesquisa e desenvolvimento em saúde priorizados pela
Organização Mundial da Saúde (OMS), visando garantir o acesso da população dos
países pobres a ferramentas de medicina coletiva com tecnologia de última
geração.
Uma
das doenças parasitárias mais devastadoras socioeconomicamente, atrás apenas da
malária, a esquistossomose infecta mais de 200 milhões de pessoas, de acordo
com a OMS, essencialmente em países pobres. Relacionada à precariedade de
saneamento, a doença tem áreas endêmicas em mais de 70 países, onde 800 milhões
de pessoas vivem sob risco de infecção, sobretudo na África. No Brasil, 19
estados apresentam casos, especialmente os da região Nordeste, além de Minas
Gerais e Espírito Santo.
Vacina
inédita
Desenvolvida e patenteada pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), a vacina
foi produzida a partir de um antígeno – substância que estimula a produção de
anticorpos, evitando que o parasita causador da doença se instale no organismo
ou que lhe cause danos. Foi utilizada a proteína Sm14, sintetizada a partir
do Schistosoma
mansoni, verme causador da esquistossomose na América Latina e na
África. “Esta é a primeira vez no mundo que uma vacina parasitária produzida
com tecnologia brasileira de última geração chega à Fase II de estudos
clínicos. Estamos trabalhando para contribuir para o enfrentamento de um
problema de saúde pública que afeta populações pobres de diversas localidades do
mundo”, destaca Miriam Tendler, pesquisadora do Laboratório de Esquistossomose
Experimental do IOC/Fiocruz, que lidera os estudos.
Baseada
em uma tecnologia inovadora, a vacina Sm14 possui patentes depositadas no
Brasil, Europa, Estados Unidos, Austrália, Japão, Nova Zelândia, África do Sul,
Canadá, Cuba, Egito e Índia, além das organizações africanas de propriedade
intelectual ARIPO e OAPI. De acordo com o presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha,
a vacina para esquistossomose desenvolvida pela Fundação representa mais um
decisivo passo no objetivo de fortalecer, no Brasil, uma base tecnológica capaz
de assegurar o atendimento das demandas do sistema público de saúde. “A vacina
traduz uma conjunção de valores significativos, pois reúne competência
científica e capacidade de transformação, levando a um processo de inovação
voltado para a resolução de uma doença negligenciada, com impacto mundial
extremamente significativo. Este imunizante, o primeiro para a doença em todo o
mundo, é fruto de uma iniciativa enraizada na Fiocruz, com liderança da
pesquisadora Miriam Tendler, além da criação de parcerias exemplares da relação
público/privado”, pontua.
A etapa final de desenvolvimento da Vacina Sm14 é alvo de uma parceria
público-privada (PPP) entre a Fiocruz e a empresa Orygen Biotecnologia S.A.,
agora parceira no desenvolvimento e produção da vacina humana. “Essa pesquisa
poderá trazer um enorme impacto social e científico para o Brasil, que é a
grande missão da Orygen desde sua criação. A Sm14 é uma daquelas iniciativas
que mostram a capacidade de inovação do país e nós estamos orgulhosos em
participar ativamente”, afirma Andrew Simpson, diretor científico da Orygen
Biotecnologia S.A.
Prioridade
para a Organização Mundial da Saúde
É crescente a preocupação da OMS com o contraste entre os países ricos e pobres
na área de insumos tecnológicos para a saúde. Em 2010, a Assembleia Mundial da
Saúde anunciou a criação de um grupo de trabalho com consultores experts em
financiamento e coordenação de pesquisa e desenvolvimento científico, que em
inglês tem a sigla CEWG. Em maio de 2013, o CEWG divulgou um plano estratégico
de ação com vistas a proporcionar aos países pobres o acesso a plataformas para
a solução de questões crônicas em saúde pública específicas desses países.
Poucos meses depois, o grupo tornou pública uma lista preliminar com 22
projetos candidatos, para, enfim, em dezembro de 2013, anunciar os 7+1 projetos
de inovação selecionados para serem apoiados política e estrategicamente pelo
fundo cooperado gerenciado pela OMS – entre os quais, a Vacina Sm14, que assim
tem assegurado o seu desenvolvimento final.
Uma particularidade relacionada à Vacina Sm14 é o fato de desequilibrar e mudar
o paradigma de transferência de tecnologia que tradicionalmente segue uma lógica
vertical onde o Hemisfério Norte ‘fornece’ conhecimento para o Hemisfério Sul.
O Sm14 inaugura uma premissa horizontal, onde o Hemisfério Sul desenvolve uma
tecnologia para o próprio Hemisfério Sul, começando com a colaboração
Brasil-África nos Testes Clínicos de Fase II da vacina contra esquistossomose.
Estudos clínicos de Fase II
Os estudos clínicos da Fase II A serão realizados em adultos moradores da
região endêmica no Senegal, na África, local atingido simultaneamente por duas
espécies do parasito Schistosoma, causador da doença. Essa característica, que
não existe em nenhuma região brasileira, é muito importante para que se possa
verificar a segurança da Vacina Sm14 com escopo ampliado em relação a estes
dois agentes. A área escolhida é hiperendêmica, ou seja, possui alta taxa de
prevalência da doença, que afeta a população de forma continuada. Nessa etapa,
a segurança do produto será avaliada, bem como a sua capacidade de induzir
imunidade nas pessoas vacinadas. Está prevista a participação de 350
voluntários, entre adultos, inicialmente, e em crianças, ao longo de três
etapas de Fase II. Os estudos foram aprovados por comitê de ética no Senegal.
Enquanto os estudos de Fase I foram realizados em área não endêmica, com
voluntários saudáveis, nos estudos de Fase II os voluntários serão moradores de
áreas endêmicas, que já tiveram contato com a doença, o que reflete a situação
real onde a vacina será utilizada efetivamente. A Vacina Sm14 será administrada
em três doses, com intervalos de um mês entre cada uma.
A Fase II A de estudos clínicos será realizada em parceria com a organização
não-governamental senegalesa Espoir pour La Santé, sendo coordenada em campo
pelo pesquisador Gilles Riveau, do Instituto Pasteur de Lille, na França, e
diretor geral do Centre de Recherche Biomedicale Espoir pour La Santé. “Esta
fase será conduzida por uma entidade respeitada internacionalmente, em uma
estrutura de laboratório de última geração, composta por profissionais
altamente qualificados”, ressalta Miriam. Estão previstas auditorias
independentes de instituições locais, seguindo as regras internacionais de
pesquisa com seres humanos e que incluirão o acompanhamento por um conselho
assessor composto por especialistas de vários países. Os testes acontecerão entre
setembro e dezembro de 2016, período que corresponde à mais alta endemicidade
da doença em território africano. Tanto o protocolo de pesquisa quanto a
documentação regulatória foram submetidos às autoridades senegalesas. A
conclusão e os resultados dos estudos estão previstos para 2017.
“Temos orgulho da importante contribuição que a Vacina Sm14 representa, não
apenas por seu caráter científico inovador, mas por inovar também no fluxo
criativo, em que um país endêmico é capaz de gerar uma tecnologia que responde
a um desafio, ao mesmo tempo, local e global. Isso é, de fato, fazer ciência
para a sociedade”, avalia o diretor do IOC/Fiocruz, Wilson Savino.
Expectativas
Na etapa de estudos clínicos de Fase I, conduzido junto ao Instituto Nacional
de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), que teve os resultados publicados
em janeiro de 2016 na revista científica internacionalVaccine,
os pesquisadores já haviam comprovado um dos mecanismos específicos da resposta
imune provocada pela Vacina Sm14: a ativação de anticorpos e da citocina
Interferon-gama, que é produzida pelo organismo em resposta ao agente
infeccioso. A partir desta etapa, os especialistas irão mapear os mecanismos
que atuam para que a pessoa adquira proteção contra a doença.
Os casos de esquistossomose acontecem em ambientes onde não há infraestrutura
adequada de saneamento básico: fezes de pessoas infectadas com o verme
Schistosoma, quando despejadas inapropriadamente em rios e outros cursos de
água doce, podem infectar caramujos do gênero Biomphalaria. Por sua vez, os
caramujos liberam larvas do verme na água, podendo infectar outras pessoas por
meio do contato com a pele, reiniciando o ciclo da doença. “A vacinação tem o
potencial de interromper o ciclo de transmissão. A vacina Sm14 foi desenvolvida
para induzir uma imunidade duradoura”, completa a pesquisadora Miriam Tendler.
Financiamento
e parcerias
A pesquisa é financiada pelo IOC/Fiocruz, OMS e Orygen Biotecnologia S.A., por
meio de recursos próprios e também através de recursos da Financiadora de
Estudos e Projetos (Finep) e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES). A etapa de desenho da molécula contou com a parceria do
pesquisador Richard Garret, do Instituto de Física de São Carlos (IFSC).