Do "Chá da
Rainha" ao "Pé de Cana", bar reinventam coquetéis com narrativas
afetivas que vão além do sabor — e conectam o público à cultura e às emoções de
cada gole
Entre as prateleiras de destilados e os copos
decorados com frutas cítricas, há algo menos visível — mas não menos importante
— que movimenta o universo dos bares contemporâneos: a memória afetiva. Em
tempos em que a experiência é tão valorizada quanto o produto, o drink deixou
de ser apenas um objeto de consumo para se tornar uma narrativa líquida. Os
nomes, as histórias e os significados por trás de cada coquetel dizem tanto
sobre quem os faz quanto sobre quem os escolhe.
No Janela Bar, hoje considerada a maior rede de
coquetelaria do Brasil, essa abordagem ganha corpo em um cardápio onde cada
drink carrega não apenas ingredientes, mas também nome, origem e até uma
personalidade própria. “Percebemos que o cliente não busca só um sabor
agradável ou uma apresentação bonita. Ele quer se identificar com o que está
bebendo. E o nome é o primeiro elo emocional com o drink”, explica Gustavo de
Paiva, sócio da casa.
A estratégia dialoga com um movimento mais amplo da
gastronomia afetiva, em que sabores despertam lembranças e rituais individuais.
Quando transportada para o universo dos drinks, essa abordagem ganha novas
camadas: a bebida passa a funcionar como um microconto — um convite à
imaginação.
Releituras e irreverência
Exemplo disso é o Chá da Rainha,
que parte de uma provocação histórica. O drink leva gin, toranja, limão e um
refrigerante de gengibre artesanal produzido pela casa. A inspiração vem da
Rainha Elizabeth II, figura britânica conhecida por seu apreço pelo tradicional
chá inglês — mas também por não recusar uma taça de gin. “A ideia era unir duas
paixões da monarca e homenagear essa figura que representa tanto a tradição
quanto a sofisticação”, conta Gustavo.
O saber popular como
ingrediente
A afetividade se expressa também no Pé de Cana, que usa cachaça, maracujá, limão e o mesmo refrigerante de gengibre da casa. O nome surgiu de uma conversa de balcão, quando um cliente nordestino, seu Álvaro, usou o termo popular para descrever os amantes da cachaça. A expressão virou título de drink e carrega, junto ao sabor marcante, a lembrança de uma brasilidade que resiste.
Já o Irlandês Voador é um exemplo de
como a releitura pode se transformar em identidade própria. Inspirado no Moscow
Mule — tradicionalmente feito com vodca —, o drink troca o destilado por
whisky, mantendo os outros elementos. A primeira versão usava whisky irlandês,
o que batizou o coquetel. O adjetivo “voador” veio naturalmente: “o efeito do
álcool explica o restante”, brinca o bartender.
A irreverência também marca o Russa Loka,
outra adaptação do Moscow Mule, agora com adição de morango. A base alcoólica
segue sendo a vodca, mas a fruta adoça e suaviza o conjunto, aproximando-o de
paladares mais doces. O nome traduz não apenas o teor alcoólico elevado, mas
também a persona pensada para o drink — uma figura feminina, noturna, intensa e
desinibida.
Afeto, identidade e oralidade
O Seu Jão, por sua vez, leva jambu,
limão, xarope de tangerina e o refrigerante de gengibre. A referência é à
planta amazônica que provoca leve dormência na boca. “É o nosso drink com
jambu, e o nome vem da forma como o público começou a pedir: ‘me vê um Jão’.
Ficou”, diz Gustavo. É um exemplo de como a oralidade e o costume moldam a
identidade de uma bebida.
Cultura pop e tropicalização
Outro destaque do cardápio é o Bola de
Fogo, versão brasileira do popular Fireball — um whisky de
canela muito consumido nos Estados Unidos. No Janela, a releitura é feita com
vodca de canela e nome traduzido literalmente. Mas há mais: a inspiração passa
também pela cultura pop brasileira, com referências ao funk e a personagens
caricatos. “O nome e a estética têm que conversar com o público daqui. A gente
abrasileirou o conceito”, comenta Gustavo.
Drinks clássicos com alma de
rua
Outros drinks mantêm uma pegada mais direta, como o
Highlander — mistura de whisky, limão, xarope de
tangerina e o já onipresente refrigerante de gengibre —, e a Danada,
a versão da casa para a caipirinha: feita com cachaça ou vodca, limão, açúcar e
um toque de água tônica. Os nomes são simples, mas eficazes. Evocam imagens,
personagens e comportamentos.
A força das histórias no copo
Para além da criatividade, essa lógica também
revela uma mudança de comportamento. Em um cenário onde a estética e a
experiência se tornaram fatores de escolha tão importantes quanto o sabor,
bares que investem em drinks com histórias ganham destaque e, muitas vezes,
fidelizam o público por meio de uma conexão mais profunda. O drink vira
identidade.
No Janela, o repertório segue em expansão. E a
fórmula que mistura ingredientes, afeto e bom humor continua a ser o grande
diferencial. “Mais do que uma bebida, a gente vende memória, conversa,
personagem. O que está no copo importa, mas o que vem antes o nome, a história,
a referência é o que faz o cliente escolher aquele drink e não outro”, finaliza
Gustavo.
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