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terça-feira, 13 de maio de 2025

Mesmo com queda nos homicídios no Brasil, assassinatos de mulheres crescem

Divulgação
Dados do Atlas da Violência 2025 mostram que o país registrou 3.903 homicídios de mulheres em 2023. Psicanalista alerta: “Estamos diante do colapso de referências sobre o que é ser homem e como lidar com o desejo do outro”

O número de homicídios caiu no Brasil, mas não para todo mundo. Em 2023, enquanto a média nacional de assassinatos registrou a menor taxa em 11 anos, os crimes contra mulheres voltaram a subir — e escancararam uma ferida racial e estrutural que ainda está longe de cicatrizar.

O Atlas da Violência 2025, divulgado nesta segunda-feira (12) pelo Ipea e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revela que 3.903 mulheres foram assassinadas no Brasil em 2023 — o maior número desde 2018. A média é de 10 assassinatos por dia. Quase 70% dessas vítimas eram negras. 

O novo relatório escancara uma ferida que já vinha sendo denunciada por especialistas: a violência de gênero não apenas persiste como se concentra nas mulheres mais vulneráveis. Segundo o levantamento, 35% dos homicídios ocorreram dentro de casa, e a maior parte foi cometida por parceiros ou ex-companheiros.

Para a psicanalista Camila Camaratta, esses dados revelam mais do que uma epidemia de violência física. Eles apontam um colapso simbólico nas formas de lidar com o outro, com o desejo, com a perda e com os papéis de gênero.

“Quando essa capacidade de elaboração falha, o sujeito age — age para destruir, calar, eliminar aquilo que não consegue elaborar. O feminicídio é justamente isso: uma passagem ao ato que denuncia uma falência profunda na possibilidade de lidar com o outro”, explica Camaratta.

Ela destaca que, além do feminicídio tipificado — que chegou a 1.450 casos em 2024, o maior número desde 2015 —, muitos homicídios de mulheres ainda não são corretamente classificados, o que pode ocultar a real dimensão do problema.

“É mais que um dado criminal. É um fenômeno psíquico, histórico e cultural que expõe o desamparo do sujeito frente à perda de referências sobre o que é ser homem, o que é ser mulher e como coexistir com o desejo do outro”, afirma.


O feminino como ameaça

A pergunta que ecoa nos noticiários e assombra famílias de vítimas — “por que tantos homens ainda matam mulheres?” — ganha contornos ainda mais densos à luz da psicanálise. Segundo Camaratta, há uma profunda dificuldade simbólica em lidar com a autonomia feminina.

“É como se o sujeito dissesse: ‘não suporto que o outro exista sem ser meu’. Quando falta a capacidade de elaboração da perda do ser amado, falta também a mediação. O impulso vira ação sem filtro, e o feminino vira ameaça concreta a ser eliminada.”

Essa lógica é reforçada por comunidades misóginas online, como os incels e grupos redpill, que disseminam a ideia de que a mulher deve obediência ao homem. Esses discursos ajudam a sustentar uma masculinidade frágil, que responde à frustração com agressividade.

“Essa construção ideológica produz sujeitos vulneráveis à angústia do abandono, da frustração, do não saber lidar com o desejo do outro. Ao invés de elaborar o luto pelo desenlace, eles agem”, pontua a especialista.


 O papel das instituições e dos vínculos primários

Camila Camaratta lembra que a civilização, segundo Freud, atua como freio das pulsões destrutivas. Mas quando instituições como família, escola e cultura falham em oferecer contornos simbólicos, essas pulsões escapam.

“A destrutividade e o ódio não são uma falha de caráter. São parte do que nos constitui humanos. O que nos civiliza é a capacidade de simbolizar e conter esses impulsos. Sem isso, sobra o ato bruto.”

A teoria do pediatra e psicanalista Donald Winnicott também ajuda a compreender esse cenário. Quando o ambiente falha nos primeiros vínculos afetivos, o sujeito pode crescer sem recursos psíquicos para tolerar frustrações. Isso, segundo Camaratta, é uma bomba-relógio.

“O feminicídio, então, surge como um gesto radical para reestabelecer um suposto controle que na verdade nunca existiu.”

A historiadora e psicanalista Élisabeth Roudinesco, em obras como A Família em Desordem, também relaciona essa violência ao vazio simbólico deixado pelo declínio do patriarcado. Sem novas formas de subjetivação, gerações de homens permanecem sem referências sólidas.

“A ausência de novas narrativas para a masculinidade gera um vazio perigoso. Sem uma resignificação simbólica, o sujeito se defende da angústia com atos concretos — como o assassinato. O feminicídio é a encenação trágica de uma subjetividade em ruínas”, interpreta Camaratta.


 Punição é essencial — mas não suficiente

Apesar de avanços como o veto do STF ao uso da “legítima defesa da honra”, o julgamento dos feminicídios ainda sofre influência de preconceitos de gênero. Muitos casos são levados a júri popular, onde estereótipos ainda pesam.

“É uma bomba-relógio que estoura quando nenhuma instância simbólica — nem social, nem afetiva, nem psíquica — funciona como barreira.”

Camila reforça que a mudança não depende apenas da legislação, mas da cultura.

“Precisamos criar espaços de escuta, de elaboração e ressignificação simbólica de novos sentidos. A psicanálise nos ensina que o sintoma carrega uma mensagem. Escutá-lo é o primeiro passo para mudar.”

Mesmo que os números oscilem, o impacto emocional permanece. “O número pode cair, mas o trauma continua atravessando gerações”, conclui a psicanalista.

 

Camila Camaratta - psicanalista, especialista em Psicologia Clínica, com atuação voltada à escuta de sujeitos em situação de violência e sofrimento social.

 

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