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O número de homicídios caiu no Brasil, mas não para todo
mundo. Em 2023, enquanto a média nacional de assassinatos registrou a menor
taxa em 11 anos, os crimes contra mulheres voltaram a subir — e escancararam
uma ferida racial e estrutural que ainda está longe de cicatrizar.
O Atlas da Violência 2025, divulgado nesta segunda-feira (12) pelo Ipea e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revela que 3.903 mulheres foram assassinadas no Brasil em 2023 — o maior número desde 2018. A média é de 10 assassinatos por dia. Quase 70% dessas vítimas eram negras.
O novo relatório escancara uma ferida que já vinha sendo
denunciada por especialistas: a violência de gênero não
apenas persiste como se concentra nas mulheres mais vulneráveis.
Segundo o levantamento, 35% dos homicídios ocorreram
dentro de casa, e a maior parte foi cometida por parceiros ou
ex-companheiros.
Para a psicanalista Camila Camaratta,
esses dados revelam mais do que uma epidemia de violência física. Eles apontam
um colapso simbólico nas formas de lidar com o outro, com o desejo, com a perda
e com os papéis de gênero.
“Quando essa capacidade de elaboração falha, o sujeito age — age
para destruir, calar, eliminar aquilo que não consegue elaborar. O feminicídio
é justamente isso: uma passagem ao ato que denuncia uma falência profunda na
possibilidade de lidar com o outro”, explica Camaratta.
Ela destaca que, além do feminicídio tipificado — que chegou a
1.450 casos em 2024, o maior número desde 2015 —, muitos homicídios de mulheres
ainda não são corretamente classificados, o que pode ocultar a real dimensão do
problema.
“É mais que um dado criminal. É um fenômeno psíquico, histórico e
cultural que expõe o desamparo do sujeito frente à perda de referências sobre o
que é ser homem, o que é ser mulher e como coexistir com o desejo do outro”,
afirma.
O feminino como ameaça
A pergunta que ecoa nos noticiários e assombra famílias de vítimas
— “por que tantos homens ainda matam mulheres?” — ganha contornos ainda mais
densos à luz da psicanálise. Segundo Camaratta, há uma profunda dificuldade
simbólica em lidar com a autonomia feminina.
“É como se o sujeito dissesse: ‘não suporto que o outro exista sem
ser meu’. Quando falta a capacidade de elaboração da perda do ser amado, falta
também a mediação. O impulso vira ação sem filtro, e o feminino vira ameaça
concreta a ser eliminada.”
Essa lógica é reforçada por comunidades
misóginas online, como os incels e grupos redpill, que
disseminam a ideia de que a mulher deve obediência ao homem. Esses discursos
ajudam a sustentar uma masculinidade frágil, que responde à frustração com
agressividade.
“Essa construção ideológica produz sujeitos vulneráveis à angústia
do abandono, da frustração, do não saber lidar com o desejo do outro. Ao invés
de elaborar o luto pelo desenlace, eles agem”, pontua a especialista.
O papel das instituições
e dos vínculos primários
Camila Camaratta lembra que a
civilização, segundo Freud, atua como freio das pulsões destrutivas.
Mas quando instituições como família, escola e cultura falham em oferecer
contornos simbólicos, essas pulsões escapam.
“A destrutividade e o ódio não são uma falha de caráter. São parte
do que nos constitui humanos. O que nos civiliza é a capacidade de simbolizar e
conter esses impulsos. Sem isso, sobra o ato bruto.”
A teoria do pediatra e psicanalista Donald Winnicott também ajuda
a compreender esse cenário. Quando o ambiente falha nos primeiros vínculos
afetivos, o sujeito pode crescer sem recursos psíquicos para tolerar
frustrações. Isso, segundo Camaratta, é uma bomba-relógio.
“O feminicídio, então, surge como um gesto radical para
reestabelecer um suposto controle que na verdade nunca existiu.”
A historiadora e psicanalista Élisabeth Roudinesco, em obras
como A Família em Desordem, também relaciona essa violência ao
vazio simbólico deixado pelo declínio do patriarcado. Sem novas formas de
subjetivação, gerações de homens permanecem sem referências sólidas.
“A ausência de novas narrativas para a masculinidade gera um vazio
perigoso. Sem uma resignificação simbólica, o sujeito se defende da angústia
com atos concretos — como o assassinato. O feminicídio é a encenação trágica de
uma subjetividade em ruínas”, interpreta Camaratta.
Punição é essencial — mas
não suficiente
Apesar de avanços como o veto do STF ao uso da “legítima defesa da
honra”, o julgamento dos feminicídios ainda sofre
influência de preconceitos de gênero. Muitos casos são levados
a júri popular, onde estereótipos ainda pesam.
“É uma bomba-relógio que estoura quando nenhuma instância
simbólica — nem social, nem afetiva, nem psíquica — funciona como barreira.”
Camila reforça que a mudança não depende apenas da legislação, mas
da cultura.
“Precisamos criar espaços de escuta, de elaboração e ressignificação
simbólica de novos sentidos. A psicanálise nos ensina que o sintoma carrega uma
mensagem. Escutá-lo é o primeiro passo para mudar.”
Mesmo que os números oscilem, o impacto emocional permanece. “O
número pode cair, mas o trauma continua atravessando gerações”, conclui a
psicanalista.

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