O Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu, recentemente, uma decisão de grande impacto que redefine substancialmente o entendimento jurídico acerca da responsabilidade médica em cirurgias plásticas puramente estéticas. A decisão estabelece a presunção de culpa do cirurgião plástico quando o resultado de uma cirurgia não for considerado harmonioso, mesmo que o profissional tenha seguido rigorosamente todos os protocolos e utilizado as melhores técnicas disponíveis.
Esta
jurisprudência contrasta com a interpretação tradicional do Conselho Federal de
Medicina (CFM) e da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), que
defendem uma avaliação de responsabilidade baseada na execução correta das
técnicas e dos métodos disponíveis, caracterizando a obrigação do médico como
uma "obrigação de meio".
Tradicionalmente,
a responsabilidade dos médicos, na maioria dos casos, é entendida como uma
obrigação de meio, o que significa que o profissional tem o dever de empregar
os melhores meios disponíveis para alcançar um resultado, sem, contudo,
garantir um resultado específico. Isso implica que o médico deve seguir os
protocolos estabelecidos, utilizar as técnicas adequadas e agir com diligência
e perícia. No entanto, o novo entendimento do STJ aplica uma lógica diferente
às cirurgias plásticas estéticas, categorizando-as como obrigações de
resultado. Isso significa que, caso o resultado não atenda às expectativas
estéticas do paciente ou ao senso comum de harmonia estética, o cirurgião pode
ser responsabilizado judicialmente, mesmo que não tenha havido negligência,
imprudência ou imperícia em sua atuação.
Por
exemplo, em um caso de rinoplastia, onde o paciente alega que o formato do
nariz após a cirurgia não está em harmonia com o restante do rosto, a presunção
de culpa recairia sobre o cirurgião, mesmo que este possa demonstrar que seguiu
todos os procedimentos técnicos corretos e que não houve complicações durante a
cirurgia.
A
decisão do STJ provoca um debate acalorado no cenário médico e jurídico,
gerando preocupações e questionamentos sobre seus efeitos práticos. É preciso
observar que este novo entendimento pode causar uma insegurança jurídica aos
cirurgiões plásticos, uma vez que os submete a uma responsabilidade objetiva,
independentemente de sua atuação técnica. Tal regime jurídico poderia levar a
um aumento nos custos dos seguros de responsabilidade civil para esses
profissionais e potencialmente desestimular a prática da cirurgia estética,
especialmente para procedimentos mais complexos ou em pacientes com
expectativas irrealistas.
Além
disso, a SBCP argumenta que a insatisfação do paciente deve ser avaliada com
base na complexidade da cirurgia e nas condições individuais de cada paciente.
Isto porque fatores alheios ao procedimento, como características pessoais,
condições de saúde preexistentes e expectativas irrealistas podem influenciar a
percepção do sucesso ou fracasso de uma cirurgia estética. Em alguns casos, o
resultado final pode ser afetado pela resposta individual do organismo do
paciente ao procedimento, como a cicatrização, que pode variar significativamente
de pessoa para pessoa.
A
SBCP também ressalta a importância do informed consent, ou consentimento
informado, no qual o paciente deve ser completamente informado sobre os riscos,
benefícios e limitações da cirurgia, bem como sobre as possíveis alternativas
de tratamento. A falta de um consentimento informado adequado pode ser
considerada uma falha na prestação de serviços e, portanto, gerar
responsabilidade para o médico.
Um
dos grandes desafios destacados por especialistas é a forma como a harmonia ou
desarmonia de um resultado cirúrgico será avaliada. Note-se que não basta a
insatisfação pessoal do paciente; é necessário buscar um consenso, o que
implica em uma subjetividade que pode resultar em interpretações divergentes
dentro do próprio judiciário. A definição de "harmonia estética" é
intrinsecamente subjetiva e pode variar de acordo com a cultura, a moda e as
preferências individuais.
A
decisão abre um precedente para que outros casos similares sejam julgados com
base nessa presunção de culpa, o que poderia reconfigurar significativamente a
prática da cirurgia plástica no Brasil. Existe a preocupação de que o
judiciário interfira cada vez mais em decisões técnicas médicas,
desconsiderando a expertise dos profissionais de saúde. Isso poderia levar a
uma judicialização excessiva da medicina, com um aumento no número de processos
contra médicos e um impacto negativo na qualidade dos serviços prestados.
Outro
desafio importante é a necessidade de estabelecer critérios claros e objetivos
para avaliar a responsabilidade do cirurgião plástico em casos de insatisfação
do paciente. É fundamental que o judiciário leve em consideração a complexidade
da cirurgia, as condições individuais do paciente, as expectativas realistas e
o cumprimento dos protocolos médicos. A simples insatisfação do paciente não
deve ser suficiente para caracterizar a culpa do médico.
Outro
aspecto crucial a ser considerado é o standard of care, ou padrão de cuidado,
que se refere ao nível de habilidade e cuidado que um médico razoavelmente
prudente e qualificado exerceria em circunstâncias semelhantes. Para determinar
se um cirurgião plástico foi negligente, é necessário avaliar se ele agiu de
acordo com este padrão aceitável na época e no local em que a cirurgia foi
realizada. Isso pode envolver a análise de diretrizes clínicas, protocolos
médicos e a opinião de outros especialistas na área.
A
decisão do STJ sobre a presunção de culpa em cirurgias plásticas estéticas traz
à tona questões fundamentais sobre a responsabilidade médica, a expectativa dos
pacientes e o papel do judiciário. É necessário um diálogo aberto entre os
setores jurídico e médico para estabelecer critérios justos e equilibrados que
protejam os direitos dos pacientes sem onerar excessivamente os profissionais
da saúde. Continuará a ser um tema de debate e provavelmente de ajustes à
medida que mais casos forem sendo julgados sob esta nova premissa legal.
A
decisão, embora alinhada a uma percepção crescente de defesa do
consumidor-paciente, levanta sérias questões sobre a aplicabilidade e
razoabilidade de se exigir resultados estéticos específicos, frente à
complexidade e variabilidade inerentes aos procedimentos cirúrgicos.
É
imperativo que o debate sobre a responsabilidade médica em cirurgias plásticas
estéticas considere a importância da autonomia do paciente, do consentimento
informado e da justa compensação por danos comprovados, sem, contudo,
comprometer a prática médica responsável e a inovação na área.
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