Um sentimento de impotência frente a "um corpo que não funciona". Um "útero vazio", "uma peça com defeito", em um mundo onde "só existem as crianças dos outros". A incapacidade de gerar um filho naturalmente, pode ocasionar diversas experiências de incompletude a um casal, mas é especialmente para as mulheres que ela parece trazer um maior impacto.
Na atualidade, a infertilidade é enxergada como um
problema de saúde pública, sendo caraterizado como a ausência de gravidez após
um ano de relações sexuais regulares e sem uso de contracepção. E, de fato,
para as mulheres, a condição comporta diversos significados que repercutem em
intenso sofrimento mental, segundo explicou a psicóloga da Famivita, Mikeller Freire, especialista
em Terapia Cognitivo Comportamental (TCC), com formação em andamento no campo
da Psicologia Perinatal e Parentalidade.
"Recebemos dezenas de relatos de mulheres
diariamente. Muitos deles relacionados à baixa autoestima, culpabilização,
raiva de si mesmas. A maioria se sente privada de algo que todas as mulheres
têm e não compreendem por que justamente a elas lhes foi tirada a oportunidade
de serem mães, de concretizarem o sonho da sua vida", pontuou Mikeller.
Noutra esfera do problema, a relação que elas têm
com o próprio corpo pode mudar, já que algumas técnicas de reprodução podem ser
bastante agressivas e implicam em consequências físicas. Dor, ganho de peso,
sensação de inchaço e outras transformações devido ao efeito de tratamentos
para a infertilidade fazem parte desse cenário. E, piorando tal contexto, para
algumas mulheres a batalha contra a balança começa desde que se iniciam as
tentativas de engravidar, porque o peso pode influenciar as chances da
gestação.
Não se pode esquecer, além disso, o fator
financeiro – um adicional de ansiedade, posto que muitas pacientes passam por
procedimentos caros, como a Fertilização In Vitro (FIV), e a angústia é
crescente quando, transferência após transferência, o casal recebe um resultado
negativo. "Nesses casos, o que observamos é que mesmo quando o problema
tem a ver com organismo masculino, a mulher tende a se culpar, como se o corpo
dela não tivesse respondido como deveria", apontou a psicóloga.
Algo essencial para minimizar o sofrimento
emocional, segundo assinalou Mikeller, é dispor de uma rede de apoio de
qualidade. "Com o companheiro, percebemos o quão importante é a dedicação
e a comunicação presente nesse laço. Como o casal está passando por isso junto,
é nítida a relevância de que um ajude o outro, ao longo da jornada. Por outro
lado, além do cônjuge, muitas mulheres buscam outras figuras que possam
escutá-las e acompanhá-las, e é aí que surge um problema: a escolha de não
compartilhar a situação por medo de serem julgadas, cobradas ou mal
compreendidas. Isso resulta no fato de que muitas mulheres se sentem solitárias
nessa caminhada”, destacou Mikeller.
Estigmatização, sexualidade e
intervenção psicológica
Boa parte das vezes, a questão da fertilidade é
vista como um ponto de viragem, em que se passa de um indivíduo ou casal para a
formação de uma família. Desse modo, enfatizou a psicóloga, ter um filho vai ao
encontro de concretizar o futuro e transmitir seus valores, configurando-se
como algo muito simbólico principalmente para a mulher, que deseja vivenciar a
barriga crescendo e toda a mudança que a gestação oportuniza.
“A maternidade é tecida no seio social como uma
conquista de se ser mulher e uma etapa quase que intrínseca ao existir
feminino. Por isso, ela assume um viés estigmatizante do ponto de vista das
expectativas da sociedade, que muitas vezes passa a cobrar isso delas,
aumentando o sofrimento. A própria questão da feminilidade pode ser encarada
como muito próxima da fertilidade. Então, quando há a incapacidade de gerar um
filho, muitas se sentem como se fossem 'menos mulher', conforme acompanhamos em
nosso dia a dia de atendimento”, afirmou Mikeller.
Problemas ao nível da sexualidade também
representam um desafio. “As relações sexuais podem ganhar um novo tom: um
momento tão íntimo e que deveria ser pautado no prazer, acaba se tornando uma
fonte de ansiedade e desconforto, já que, muitas vezes, o casal passa a
programar as relações para o período fértil – quando há mais chances de
engravidar. Isso pode contribuir para que a relação seja vista como algo
maquinal, prejudicando a intimidade e desgastando o relacionamento”, explanou.
Assim, para algumas mulheres, num ponto extremo, a
infertilidade pode significar não só a perda da autoestima, mas da segurança
financeira, da capacidade de se projetar no futuro e às vezes até mesmo da
relação. Por isso, de acordo com Mikeller, a intervenção psicológica precisa
estar atenta no sentido de contemplar as várias faces do problema, sejam
sociais, mentais ou conjugais, podendo contribuir para uma melhoria na
qualidade de vida dessas mulheres, colaborando para que atravessem isso de
forma mais amena.
“Ter um acompanhamento multiprofissional é
fundamental para influenciar positivamente a forma que a mulher se relaciona
consigo e com seu corpo, promovendo também práticas centradas no bem-estar
físico e em sensações prazerosas”, finalizou Mikeller.
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