O dever do Estado de promover políticas públicas,
disponibilizar serviços aos cidadãos e garantir direitos existenciais mínimos
pressupõe a busca por fontes de custeio, sendo a principal delas a arrecadação
tributária.
Esse poder de exigir dinheiro dos contribuintes é controlado
por normas e regras específicas no intuito de afastar eventual abuso dos
governantes. Chamo a atenção para o princípio da legalidade. Ou seja, qualquer imposição de tributos
requer a aprovação prévia do Poder Legislativo, com antecedência razoável,
dentre outros requisitos que atuam para limitar o impulso arrecadatório
estatal. Assim funciona o regime de direito público. Nada pode ser feito se não
estiver previsto no ordenamento jurídico.
Depois de as regras serem estabelecidas em lei, de forma
abstrata, cabe ao fisco ir atrás dos impostos, taxas e contribuições,
obrigatoriamente, sendo proibido, por óbvio, deixar de cobrar de um ou de outro
por decisão arbitrária. Primeiro, porque a receita pertence a toda sociedade
que integra o ente federativo. E, segundo, por uma questão de isonomia.
Mas a lei - sempre ela - abre a possibilidade de o Estado
abdicar de parte da arrecadação. Existem, assim, os chamados incentivos
fiscais, as isenções, desonerações tributárias, dentre outros institutos que
importam em renúncia de receitas e podem ser criados, justamente, para
estimular a economia, fomentar setores e preservar empregos. Observadas as
condicionantes legais, em especial os preceitos da Lei de Responsabilidade
Fiscal (Art.14), a concessão ou ampliação da renúncia é lícita e serve como
relevante ferramenta de governo.
E foi exatamente esse o tema que levou o Tribunal de Contas
do Estado de São Paulo (TCESP) a suspender, no dia 21 de junho, a sessão que
analisava as contas anuais do Governo do Estado de São Paulo relativas ao
exercício de 2022. O Plenário decidiu solicitar mais dados e documentos sobre a
renúncia fiscal, adiando a decisão pela primeira vez na história. A análise foi
concluída na semana seguinte, dia 28 de junho, com a emissão de um parecer
favorável, porém ressalvando o tema, porque os sete Conselheiros que compõem o
colegiado entenderam que o Estado não enviou números e informações
suficientemente detalhadas. Essa percepção não é de hoje, e vem sendo observada
há muito tempo.
Desde 2017, os pareceres emitidos pelo TCESP insistem na
necessidade de o Governo do Estado ser mais proativo e transparente, para que
as equipes de fiscalização do órgão de controle externo tenham acesso às informações,
mas esbarra em uma alegação de “sigilo fiscal”. Quando fui relator das contas
referentes ao exercício de 2020, registrei em meu voto a necessidade de se ter
condições de mensurar os impactos da renúncia na atividade econômica e nas
finanças públicas. Entre as 128 determinações constantes de meu voto, acolhido
pelo Pleno em 23 de junho de 2021, destaco as duas abaixo, destinadas à
Secretaria da Fazenda e Planejamento:
64. Revise os
normativos propostos no âmbito do Plano de Ação, por meio da Ação D.3,
aperfeiçoando-os de forma que neles se distribuam competências e se
regulamentem as atividades de estimação da fruição de benefícios tributários e
cálculo da renúncia de receitas incorrida, bem como para as atividades de
projeção das renúncias para os exercícios futuros e a produção dos
demonstrativos requeridos pela Lei de Responsabilidade Fiscal e pela
Constituição Federal, considerando todos os benefícios de todos os tributos,
individualizados por ato concessório, incluindo a elaboração de um anexo
metodológico e o registro das memórias de cálculo da estimação apresentada;
65. Aprimore os
Demonstrativos de estimativa e compensação das renúncias de receitas, incluindo
todos os tributos estaduais e todas as modalidades de renúncia elencados na Lei
Complementar nº 101/2000, cuidando para que haja o mínimo indispensável de
informações ocultadas em virtude de sigilo fiscal;
Apesar de alguns avanços desde então, a atividade de
controle externo continua com dificuldades de verificar se há obediência ao
princípio da legalidade e se há efetividade nos resultados decorrentes de
benefícios concedidos pelo Estado a contribuintes e categorias determinadas.
O que a sociedade paulista têm de saber, primeiro, é quanto,
exatamente, o Estado deixa de arrecadar, no total, em razão da renúncia fiscal.
Para que se tenha uma ideia da dimensão desse montante, a estimativa do Projeto
de Lei de Diretrizes Orçamentárias enviado pelo Executivo à Assembleia
Legislativa é que, em 2024, deixarão de ser cobrados R$ 58 bilhões em ICMS e
outros R$ 5 bilhões em IPVA.
Também precisamos saber como são produzidos os estudos que
projetam o impacto orçamentário-financeiro e quem toma ou deveria tomar a
decisão relativa à concessão do benefício.
Por fim, é essencial que o TCESP possa verificar quem são,
principalmente, as pessoas jurídicas beneficiárias, e em que medida. Ainda que
os dados específicos envolvam “sigilo fiscal”, isso não pode impedir um órgão
de controle de exercer sua competência constitucional. O acesso aos dados por
parte do fiscalizador não significa ruptura do sigilo. O objetivo é entender a
motivação e fundamentação do ato administrativo, para atestar se essas
renúncias, de fato, foram criadas para atingir finalidades sociais relevantes.
Nesse contexto, é preciso lembrar do princípio da escassez e
seu diálogo com a equação custo-benefício. A dispensa de uma obrigação
tributária impõe rigor e justificativa do ponto de vista do interesse público,
uma vez que os recursos estatais têm como prioridade suprir direitos
fundamentais em áreas básicas e sensíveis. Todo recurso que deixa de entrar nos
cofres do Estado deve ter destino mais relevante e melhor resultado do que
teria caso fosse recolhido e aplicado diretamente em ações de custeio ou
investimento. E isso precisa ser demonstrado para o TCESP e para todos os
paulistas.
Dimas
Ramalho - Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.
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