Pesquisa da USP de Ribeirão Preto aponta que a combinação entre dois fatores – presença de citocinas inflamatórias no sangue e padrão de uso da droga – eleva as chances de desenvolver o transtorno neuropsiquiátrico (foto: Pixabay)
A presença de proteínas inflamatórias
(citocinas) no sangue pode potencializar os efeitos do uso diário de maconha e
aumentar em adultos o risco de desenvolver psicoses. Resultado semelhante foi
observado, também na presença das citocinas, quando o consumo da droga ocorreu
durante a adolescência, não necessariamente de forma diária. Distúrbios desse
tipo envolvem sintomas como delírios, incluindo a perda do senso de realidade,
e alucinações, como ouvir vozes, além de alterações cognitivas e prejuízos
sociais.
A conclusão foi apresentada por um
grupo da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
(FMRP-USP) em artigo publicado na revista Psychological Medicine.
Pela
primeira vez, pesquisadores brasileiros detectaram que indivíduos expostos à
combinação desses dois fatores – presença de citocinas inflamatórias no sangue
e uso da maconha (seja diário ou durante a adolescência) – têm mais chances de
desenvolver o transtorno quando comparado àqueles não expostos a nenhum deles
ou apenas a um. Segundo os autores, trata-se da “primeira evidência clínica de
que a desregulação imunológica modifica a associação maconha-psicose”.
O trabalho é parte de um projeto
desenvolvido pelo consórcio internacional multicêntrico, o European Network of
National Schizophrenia Networks Studying Gene-Environment Interactions (EU-GEI), que engloba 17 centros de
seis países, inclusive o Brasil. Em 2019, o consórcio publicou artigo
na revista The Lancet Psychiatry apontando
que o uso diário de maconha aumenta, em média, em até três vezes o surgimento
de psicose.
Agora, os
pesquisadores analisaram dados de 409 pessoas, compreendendo pacientes em
primeiro episódio psicótico e controles da comunidade, com idade entre 16 e 64
anos, que representam a amostra de Ribeirão Preto e mais 25 municípios da
região. Foram consideradas variáveis como o padrão de consumo de maconha
(diário, não diário ou nunca usou), o tempo de uso (maior ou menor do que cinco
anos) e se começou o uso na adolescência ou após.
Além da
aplicação do questionário de experiência com maconha, foram medidas diversas
citocinas plasmáticas no sangue dos voluntários, utilizadas para o cálculo de
um escore inflamatório para representar o perfil inflamatório sistêmico dos
participantes. Também foram coletados dados clínicos e sociodemográficos,
especialmente os conhecidos como variáveis de confusão (idade, sexo,
escolaridade, etnia, índice de massa corpórea, consumo de tabaco e de outras
substâncias psicoativas). Os resultados obtidos foram independentes das
variáveis de confusão.
“Nem todas as pessoas que usam
maconha desenvolvem psicose. Isso indica que outros fatores, sejam eles
biológicos, genéticos ou ambientais, podem modificar essa associação. Em estudo anterior, durante meu
mestrado, identificamos relação entre citocinas plasmáticas e primeiro episódio
psicótico. Com essa descoberta e a publicação recente do consórcio
identificando maior incidência de psicose naqueles que fazem uso diário da
substância, nosso próximo passo foi verificar se o fator biológico [perfil
inflamatório] estaria alterando a associação entre maconha e psicose”,
explica Fabiana Corsi-Zuelli,
primeira autora do artigo.
E
completa: “Encontramos interação estatística significativa entre o perfil
inflamatório dos participantes e o consumo diário ou na adolescência da droga.
Em síntese, os resultados indicam que disfunções no sistema imunológico podem
modificar a associação entre consumo de maconha e desenvolvimento de psicose,
de modo que a combinação dos dois fatores aumenta as chances de surgimento do
transtorno”.
Corsi-Zuelli é doutoranda do Programa
de Pós-Graduação em Neurologia e Neurociências da FMRP-USP e tem apoio da
FAPESP.
A professora Cristina Marta Del-Ben,
do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da FMRP-USP e
orientadora do trabalho, destaca que a psicose tem vários fatores de risco, que
vão desde biológicos, como predisposição genética e problemas durante a
gestação, até ambientais, entre eles experiências traumáticas na infância e
adolescência e exposição a substâncias psicoativas, principalmente a maconha.
“Ainda
sabe-se pouco sobre os mecanismos da doença. Nossos resultados mostram que o
uso frequente e na adolescência de maconha é um fator de risco para psicoses.
Não encontramos a mesma associação para uso eventual ou recreativo. No estudo
multicêntrico, que incluiu cidades europeias com maior diversidade de tipos de
maconha disponíveis, verificamos também que o risco de psicoses é maior em
usuários da droga de alta potência, com THC [delta 9-tetrahidrocanabinol] igual
ou acima de 10%”, diz a professora.
O THC é o
princípio ativo responsável pelos efeitos psicoativos da maconha.
Para a
medicina, a psicose se traduz como uma síndrome neuropsiquiátrica, ligada a
alterações anatômicas e funcionais do cérebro. Pode estar relacionada a
mudanças na ação de um neurotransmissor (dopamina) importante para a
comunicação dos neurônios. O excesso de dopamina ou o dano direto em algumas
áreas cerebrais podem levar a alucinações, delírios e comportamentos
desorganizados.
Outros
neurotransmissores, como o sistema glutamatérgico, também têm sido implicados
na neurobiologia das psicoses. Atualmente discute-se a interconexão neuroimune,
em especial como a desregulação do funcionamento do sistema imunológico pode
gerar alterações neuroquímicas, morfológicas e comportamentais, aumentando o
risco para o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos.
Sintomas
psicóticos podem estar presentes em diversos transtornos psiquiátricos, sejam
afetivos ou não. Mais recentemente, estudos vêm apontando casos de psicose em
pacientes contaminados com SARS-CoV-2. O tratamento do distúrbio envolve uma
combinação de medicamentos, terapias psicológicas e apoio familiar.
Próximos passos
Corsi-Zuelli
ressalta que a origem das alterações inflamatórias nas psicoses ainda é
obscura, mas pode vir de uma combinação gene-ambiente. “A inflamação observada
em transtornos psiquiátricos é tida como de baixo grau, não nos níveis vistos
em pacientes com doenças autoimunes ou sepse. No entanto, é uma desregulação
suficiente para levar a alterações neuroquímicas e comportamentais, como
sugerido por estudos experimentais”, explica a doutoranda.
Segundo
ela, a proposta agora é trabalhar com variantes genéticas associadas ao sistema
imunológico, analisar dados de neuroimagem e avaliar a relação deles com
fatores de risco ambientais para avançar no tema. “Essa abordagem de interação
gene-ambiente ajudará a entender a neurobiologia da doença, especialmente a
participação do sistema imunológico”, afirma.
A
doutoranda avalia que a associação entre inflamação e transtornos psiquiátricos
é de grande relevância clínica e tem recebido cada vez mais atenção. “Não
apenas pensando em alternativas para o tratamento desses transtornos, mas
também como forma de abordar questões relacionadas à saúde física dos pacientes
psiquiátricos, muitas vezes negligenciadas.”
Segundo Del-Ben, para as próximas
etapas, está sendo desenvolvido um trabalho em parceria com o professor Geraldo Busatto Filho,
da Faculdade de Medicina da USP, para pesquisar se marcadores inflamatórios no
sangue estão ligados a alterações encefálicas em parte dos pacientes da
amostra.
A pesquisa
já teve dois reconhecimentos internacionais. Recebeu uma premiação de destaque
para alunos de doutorado (Predoctoral Research Award), concedida pela Society
of Biological Psychiatry. E foi selecionada pela Schizophrenia
International Research Society para ser apresentada durante congresso
realizado virtualmente em 2020.
Além da bolsa de Corsi-Zuelli,
a FAPESP apoiou a pesquisa por meio de outros quatro
processos (12/05178-0; 13/11167-3; 17/13353-0;
e 18/07581-2).
O artigo The independent and combined effects of cannabis use and systemic
inflammation during the early stages of psychosis: exploring the two-hit
hypothesis pode ser lido em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33736715/.
Luciana
Constantino
Agência
FAPESP
https://agencia.fapesp.br/inflamacao-sistemica-pode-influenciar-efeito-da-maconha-e-risco-de-desenvolver-psicose/37541/
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