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Pesquisadores da USP analisaram tecidos de nove pacientes que morreram de COVID-19 (ilustração: Elia Caldini) |
Em artigo publicado no Journal
of Applied Physiology, pesquisadores da USP mostram que o dano causado pelo
SARS-CoV-2 ao revestimento de pequenos vasos pulmonares é um fenômeno
determinante para o agravamento da doença
A trombose
em pequenos vasos (capilares) do pulmão é uma das primeiras consequências da
COVID-19 grave, precedendo até mesmo a dificuldade respiratória decorrente do
chamado dano alveolar difuso. Foi o que comprovou um estudo brasileiro publicado este
mês no Journal of Applied Physiology. A partir da autópsia de nove
pacientes que morreram após desenvolver a forma grave da doença, foi possível
observar um quadro muito característico, envolvendo alterações na
vascularização pulmonar e trombose.
No trabalho, os pesquisadores
descrevem, pela primeira vez, aspectos relacionados ao dano endotelial e à
formação de trombos ocasionados pela infecção. As descobertas – entre elas a
constatação de que a COVID-19 tem como caráter central a formação de trombos na
microcirculação pulmonar – contribuem para o entendimento da fisiopatologia da
enfermidade e o desenvolvimento de novas estratégias terapêuticas.
“Esse estudo foi a prova final
do que vínhamos alertando desde o comecinho da pandemia: a COVID-19 grave é uma
doença trombótica. O vírus SARS-CoV-2 tem um tropismo pelo endotélio [é atraído
para esse tecido], a camada de células que reveste os vasos sanguíneos. Portanto,
ao invadir as células endoteliais, ele afeta primeiro a microcirculação. O
problema começa nos capilares do pulmão, para depois ir coagulando os vasos
maiores, podendo atingir qualquer outro órgão”, explica a pneumologista Elnara Negri, professora
da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), coautora do
artigo e uma das primeiras pesquisadoras do mundo a trabalhar com essa hipótese
(leia mais em: agencia.fapesp.br/33175).
No estudo, apoiado pela
FAPESP, os autores observaram por microscopia eletrônica o efeito do vírus nas
células endoteliais do pulmão de pacientes que morreram com COVID-19 grave no
Hospital das Clínicas (HC) da FM-USP.
A partir de autópsia
minimamente invasiva, foi possível observar em todas as amostras a alta
prevalência de microangiopatia trombótica – oclusão generalizada na
microcirculação por trombose. As amostras analisadas são oriundas de pacientes
que foram hospitalizados entre março e maio de 2020. Todos os pacientes foram
intubados, necessitaram de terapia intensiva e morreram de hipóxia refratária
(insuficiência respiratória). Vale destacar que nenhum paciente incluído no
estudo foi tratado com anticoagulantes, pois essa não era a diretriz para o
tratamento de COVID-19 naquele momento. Também não existiam vacinas disponíveis
na época.
Endotélio
descamado
Negri explica que, revestindo o
endotélio, existe uma camada glicoproteica denominada glicocálix, que faz com
que o sangue passe naturalmente pelas artérias, veias e capilares sem coagular.
“Alguns estudos anteriores
realizados por Helena Nader na
Unifesp [Universidade Federal de São Paulo] mostraram que, para invadir a
célula, o vírus se liga principalmente ao receptor ACE-2 [proteína encontrada
na superfície de diversas células do corpo, inclusive nas do epitélio e
endotélio do sistema respiratório]. No entanto, antes disso, ele se liga ao
heparan sulfato [um polissacarídeo] associado à membrana das células
endoteliais, que forma justamente o glicocálix. Portanto, quando o SARS-CoV-2
invade o endotélio, ele o descama e destrói o glicocálix. Isso resulta em
exposição tecidual e na coagulação intravascular, começando na
microcirculação”, detalha Negri.
Como a ação inicial do vírus é
na microcirculação pulmonar, os exames contrastados para investigação de
presença de trombos em vasos maiores, realizados em pacientes com COVID-19
grave na época, nunca detectaram o problema precocemente.
No entanto, explica Negri, a
disfunção endotelial é um fenômeno-chave na COVID-19, pois está diretamente
associada à ativação da resposta inflamatória característica da doença. “A
invasão massiva do vírus e a destruição do endotélio promovem a ruptura da barreira
endotelial e o recrutamento de células imunes circulantes, ativando vias
relacionadas à trombogênese e à inflamação”, diz.
No trabalho, os pesquisadores
observaram que o dano causado no endotélio tende a preceder duas
características comuns a casos de desconforto respiratório: o vazamento
significativo da membrana alvéolo-capilar dos pulmões e o acúmulo de polímeros
de fibrina (proteína associada à coagulação e ao processo de cicatrização) nos
alvéolos pulmonares.
Um trabalho do mesmo grupo da
FM-USP, liderado por Thais Mauad, incluindo análise do
transcriptoma (conjunto de moléculas de RNA expressas em um tecido), demonstrou
que diversas vias associadas à coagulação, à ativação de plaquetas e à formação
de trombos já estavam ativadas precocemente nos pulmões de pacientes com dano
alveolar, precedendo a inflamação.
A análise confirmou ainda que
não se trata de uma coagulação comum, desencadeada pela ativação dos fatores de
coagulação. “Na COVID-19, a coagulação se dá por lesão endotelial e é
potencializada por netose [mecanismo imune que consiste na saída do material
genético contido no núcleo dos neutrófilos em forma de redes – as NETs – na
tentativa de prender e matar o patógeno] e pela lesão das hemácias com
dimorfismo [uma alteração morfológica das células vermelhas do sangue] e
ativação plaquetária. Portanto, existe toda uma estrutura para que o sangue
fique mais denso e provoque tantas complicações”, afirma.
A pesquisadora ressalta ainda
que, nesse cenário, onde o sangue se torna muito viscoso e altamente
trombogênico, o paciente precisa ser mantido hidratado, diferentemente do que é
preconizado para o tratamento do dano alveolar difuso. “Além disso, o timing e
o controle rigoroso da anticoagulação são fundamentais”, alerta.
Não por acaso, outro estudo do
mesmo grupo, com a participação das pesquisadoras Marisa Dolhnikoff e Elia Caldini, demonstrou
que o dano pulmonar em casos graves de COVID-19 está associado ao nível de
netose. Ao analisar amostras de tecido de autópsia pulmonar, os cientistas
observaram que, quanto mais elevado era o nível de NETs, maior era o dano
pulmonar dos pacientes.
Negri conta que começou a
desconfiar da relação entre COVID-19 e trombose no começo da pandemia, quando
identificou um quadro muito parecido com o de pacientes cardíacos que havia
tratado há mais de 30 anos. Após a cirurgia cardíaca, esses pacientes, na
época, também apresentavam microcoagulação vascular, no entanto, isso ocorria
por eles serem submetidos a um tratamento denominado circulação extracorpórea
com oxigenadores de bolha – equipamento que não é mais utilizado na medicina
justamente por causar dano endotelial.
“Era uma técnica muito
utilizada há 30 anos, mas que provoca uma lesão pulmonar muito parecida com a
da COVID-19. Então, eu já tinha visto isso. Além da lesão pulmonar, outra
semelhança entre os dois casos é a ocorrência de fenômenos trombóticos
periféricos, como o dedo do pé roxo, por exemplo”, conta.
“Como na COVID-19 grave a queda
inicial da oxigenação no sangue é secundária à trombose dos capilares
pulmonares e não há inicialmente acúmulo de líquido no pulmão, o órgão não fica
‘encharcado’ nem perde sua complacência. Isso quer dizer que o pulmão do
paciente com COVID-19 grave inicial não se parece com uma esponja cheia de
líquido, como é o caso de pacientes com síndrome de desconforto respiratório.
Pelo contrário, na instalação da insuficiência respiratória associada à
COVID-19 grave, o pulmão está desidratado e, apesar de o ar chegar até o
alvéolo pulmonar, ele não consegue passar para a circulação por causa da
formação de coágulos”, explica.
Negri conta que, nesses casos,
o paciente consegue facilmente encher o pulmão de ar, mas o oxigênio não
consegue passar para o sangue, pois os capilares estão obstruídos. “Isso
explica a chamada happy hipoxia [hipóxia feliz], ou seja, o
paciente não sente que sua oxigenação está baixa e não tem falta de ar”, diz.
Ao presenciar a intubação de
uma paciente com COVID-19 grave, a pesquisadora constatou que era necessária
uma proposta de tratamento diametralmente diferente do que se fazia no começo
da pandemia.
“O segredo para tratar o
paciente com COVID-19 grave é mantê-lo hidratado e usar anticoagulante na dose
certa, checando o nível adequado de anticoagulação em ambiente hospitalar assim
que ele começa a dessaturar, ou seja, ter baixa de oxigênio no sangue. Depois
disso, é preciso manter controle diário dos níveis terapêuticos de
anticoagulação por meio de exames de sangue, sempre em ambiente hospitalar para
não haver risco de sangramento, e a profilaxia de quatro a seis semanas em
média após a alta, que é o tempo de o endotélio se refazer”, comenta.
A pesquisadora explica que esse
protocolo com hidratação e o uso de anticoagulantes se dá porque,
diferentemente das outras síndromes agudas respiratórias (SARS), nas quais o
problema da falta de passagem de oxigênio dos pulmões para o sangue está
principalmente relacionado com a inflamação nos alvéolos pulmonares, na
COVID-19 grave inicial o dano endotelial dos capilares pulmonares é
predominante.
“Era justamente essa diferença
entre a COVID-19 e as outras síndromes respiratórias agudas graves que não se
sabia lá no comecinho da pandemia. Por isso, inclusive, que tantos pacientes
morreram nas UTIs [unidades de terapia intensiva] da Itália, por exemplo. O
protocolo de tratamento usado naquele momento era outro”, lembra.
Antes do trabalho publicado
no Journal of Applied Physiology, o grupo de Negri já havia
observado, ainda em 2020, que o uso de heparina (um anticoagulante) melhorou a
oxigenação de pacientes críticos. No ano seguinte, em colaboração com colegas
de vários países, eles realizaram um ensaio clínico randomizado em que puderam
demonstrar que o tratamento com heparina diminuiu a mortalidade em casos graves
de COVID-19. Os resultados foram divulgados no British Medical Journal (leia
mais em: agencia.fapesp.br/37076).
“O estudo contribuiu para mudar
as diretrizes de tratamento da COVID-19 no mundo, pois pudemos demonstrar uma
redução de 78% no risco de mortalidade quando a anticoagulação foi iniciada em
pacientes que necessitavam receber oxigenação, mas ainda não estavam na UTI”,
conta a pesquisadora.
Negri destaca que existe uma
pressa em reverter a disfunção endotelial nos casos de COVID-19 grave com o uso
de anticoagulantes. “É preciso tratar a coagulação o quanto antes, pois isso é
crucial para evitar o desenvolvimento de síndrome respiratória aguda e outras
decorrências da doença, como é o caso da chamada COVID longa”, diz.
Outro estudo recém-publicado na Nature
Medicine por cientistas britânicos reforça o caráter de formação de
trombos do SARS-CoV-2. No trabalho, os únicos marcadores de prognóstico para
COVID longa identificados foram fibrinogênio e dímero D – duas proteínas
associadas à coagulação.
“O estudo mostra que a COVID
longa resulta de trombose que não foi tratada adequadamente. O problema na
microcirculação pode persistir em diversos órgãos, inclusive no cérebro,
coração e músculos, como se o paciente sofresse pequenos infartos”, explica
Negri.
O artigo Ultrastructural
characterization of alveolar microvascular damage in severe COVID-19
respiratory failure pode ser lido em: https://journals.physiology.org/doi/abs/10.1152/japplphysiol.00424.2023.
Maria Fernanda Ziegler
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/novo-estudo-comprova-que-a-covid-19-grave-e-uma-doenca-trombotica/49914