A polêmica dentro do próprio governo federal sobre
a exploração da foz do Amazonas é uma boa oportunidade para o Brasil discutir a
Amazônia de forma mais ampla e profunda. O país precisa entender,
definitivamente, como e por que essa região tão cobiçada foi deixada à margem
do desenvolvimento, prejudicando significativamente a população que a habita e,
a partir disso, apontar caminhos para mudar essa situação.
Convém olhar com cuidado os dados que mostram a
magnitude da Amazônia, esse gigante da região norte que abriga sete estados:
Amazonas, Acre, Amapá, Pará, Tocantins, Rondônia e Roraima. Sua área é de 3,88
milhões de km², o correspondente a 45,65% do território nacional, e equivalente
ao território ocupado por 27 países da Europa, que somam 486,7 milhões de
habitantes. Uma diferença abissal em relação à população amazônica, de apenas
17,83 milhões de pessoas (Censo 2022), ou seja, somente 8,78% da população
brasileira.
Além disso, ali está concentrada a maior parte das
terras indígenas brasileiras, que ocupam de 23% a 26% do território amazônico e
abrigam 846 mil indígenas (Censo 2022), o correspondente a 51% dessa população
no Brasil. É verdade que a população indígena, nos últimos 12 anos, vem
crescendo à taxa de 5,21% ao ano, média muito maior que a média nacional (0,5%
ao ano), mas representa apenas 4,75% da população amazônica.
Há outra peculiaridade importante: da área total da
Amazônia temos que pouco mais de sua metade (51%) responde por áreas de uso
restrito da, sendo 10,54% de áreas integralmente protegidas; 14,31% de áreas de
uso sustentável, e 26,07% de terras indígenas.
Esse dado remete à preservação da floresta, questão
discutida mundialmente há algumas décadas. Neste ponto, é preciso destacar que,
passados 523 anos do descobrimento do Brasil, a Amazônia ainda possui de 83% a
85% de sua floresta em pé.
Combater o desmatamento é medida impositiva. Manter
a floresta em pé atende a necessidades ambientais pela questão climática – a
mais discutida -, mas também alerta para a preservação da fauna e da flora.
Maior banco genético do planeta, a Amazônia possui biodiversidade incomparável,
com mais de 33.000 espécies de plantas superiores e 10.000 espécies de plantas
portadoras de princípios ativos. Na imensidão da floresta crescem 2.500 tipos
de árvores de grande porte, quantidade análoga a um terço de toda a madeira
tropical do mundo. A fauna, igualmente rica, abriga mais de 5.000 espécies de
animais catalogados.
Há, ainda, o apelo das necessidades econômicas. Na
floresta amazônica concentra-se mais de um quinto da disponibilidade de água
doce do planeta, volume alimentado pelo Sistema Aquífero Grande Amazônia
(SAGA), o maior do mundo. O índice pluviométrico é alto e os rios voadores
levam chuva para as regiões centro-oeste, sudeste e sul, contribuindo para o
sucesso do agronegócio, setor responsável por 26% do Produto Interno Bruto
brasileiro. Além disso, assegura a geração de energia hídrica, barata e
confiável, que abastece as indústrias instaladas no sul e sudeste e os lares
nas duas regiões mais desenvolvidas do país.
Tudo isso vem sendo mantido graças à consciência
ambiental do povo simples da Amazônia, à custa de enormes sacrifícios dessa
população. A região tem IDH muito inferior à media nacional, assim como a
escolaridade e a remuneração médias. A infraestrutura tem nível de abandono; os
serviços de saúde são precaríssimos. E a expectativa de vida do amazonense ao
nascer é de cinco anos a menos que a dos brasileiros de outras regiões.
A despeito de seu esforço, a população da Amazônia
sofre há décadas com o descaso do governo federal, cujas ações cuidaram
unicamente de impor restrições econômicas por meio de leis, decretos, portarias
e atos normativos sempre limitantes e espasmódicos. Quase nada foi pensado ou
executado com foco nos 18,8 milhões de habitantes da região.
A única ação efetiva dos governos brasileiros em
favor da Amazônia aconteceu há mais de 50 anos com a criação da Zona Franca de
Manaus/Polo Industrial de Manaus, ainda que limitada à capital do estado. Após
a Constituição Federal de 1988, nada foi acrescentado ao desenvolvimento da
região. Pelo contrário, os governos – à exceção de Luiz
Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff – sempre
tentaram estrangular a ZFM, editando continuamente leis e atos, depois
derrubados pelo Supremo Tribunal Federal.
Tanto tempo de menosprezo oficial explica o nível
crítico das desigualdades regionais e sociais que castigam o povo da Amazônia.
Para reverter essa situação, algumas medidas se impõem. É preciso investimento
estatal – diretamente da União ou por meio de suas estatais - de forma contínua
e obedecendo a planos plurianuais. Também é fundamental investimento em
infraestrutura básica – saneamento, portos, aeroportos, rodovias, ferrovias e
metrôs – e em educação, mediante a implantação de programas de escola em tempo
integral, com professores mais qualificados, comprometidos e, obviamente, mais
bem remunerados. Além disso, é fundamental a priorização das renúncias fiscais
(gastos tributários) em favor dos beneficiários das regiões norte e nordeste,
os mais empobrecidos do país.
Falta no Brasil a consciência de que, para
assegurar a floresta em pé, o caminho mais seguro é garantir ao homem da
Amazônia condições de emprego e renda, bom índice de desenvolvimento humano,
escolaridade e expectativa de vida, compatíveis com a média nacional.
A questão é que nos últimos 20 ou 30 anos os
principais atos dos governos ignoraram essa necessidade. Um exemplo: a
Petrobras, maior estatal nacional, vendeu seus ativos em Urucu-Coari-Amazonas,
onde produzia de 45.000 a 50.000 barris/dia e cerca de 6 milhões de m³ de gás
natural/dia, produção que com poucos investimentos poderia alcançar 12 milhões
de m³ de gás natural/dia. Posteriormente, o grupo privado vencedor da licitação
desistiu do negócio em razão de passivos com o Fisco e com empresas estatais e
privadas. Com isso, o polo voltou para a Petrobras que já manifestou não ter
mais interesse em prospectar e produzir petróleo (óleo cru) em depósitos
shallow por ser atualmente empresa especializada e vocacionada para a exploração
offshore em águas profundas.
A Petrobras ainda alienou a refinaria de petróleo
de Manaus (Reman) e o gasoduto que transportava de 5,5 a 6,0 milhões de m³ de
gás natural/dia de Urucu para Coari/Manaus, equipamento que, com modestos
investimentos, poderia duplicar o volume transportado.
Como se não bastasse, a renúncia fiscal da União,
da ordem de 4,5% a 5% do PIB (R$450 a 500 bilhões/ano), é predominantemente
dirigida (mais de 65%) para beneficiários das regiões sudeste e sul, justamente
as mais desenvolvidas, contrariando o que determina a Constituição Federal
(artigos 43, 151 e 155 e parágrafos 6º e 7º do art. 165). Ademais, o Orçamento
da União, que cobra muito de tributo mas pouco ou nada investe, tem
praticamente ignorado a Amazônia, privilegiando as regiões mais desenvolvidas,
e novamente contrariando a Constituição (parágrafos 6º e 7º do art. 165).
Enquanto isso, a rodovia BR-319 (Manaus-Porto
Velho) está intransitável por falta de manutenção adequada, sem perspectiva de
recomposição por falta de licença ambiental, deixando a população privada do
mais importante acesso terrestre para o resto do país.
Agora, o governo cogita a implantação de mais ações
restritivas, sem nenhuma discussão a respeito das consequências graves e
injustas para o povo amazônico. A principal, sem dúvida, é a exploração de
petróleo na foz do Amazonas, sem estudo prévio das mitigações possíveis e já
praticadas no mundo.
Resta aos sete estados da região norte,
responsáveis na prática pela manutenção do maior patrimônio nacional, a
floresta amazônica, elaborarem um documento conjunto, um plano de metas decenal
ou vintenal construído após estudos e aperfeiçoamentos, com identificação de
recursos para sua implementação, submetendo-o ao governo central e ao Congresso
Nacional.
Enquanto isso não é viabilizado, é possível
implementar iniciativas para dar início ao plano de redução do processo de
empobrecimento do povo amazônico. É preciso aproveitar o momento histórico,
após John Biden, presidente dos Estados Unidos, país líder mundial com PIB de
US$ 23 trilhões/ano – 14 a 15 vezes maior que o PIB brasileiro -, reconhecer a
responsabilidade dos países ricos e conclamar seus colegas líderes do G7 ou G10
a avançarem na mesma direção, assegurando ao governo brasileiro contribuições
financeiras em programas decenais voltados à conservação da floresta amazônica.
Evidentemente, não se trata de mera generosidade
estrangeira, mas de reconhecimento da importância da floresta para a
humanidade. O mundo parece, enfim, estar tomando consciência de que o meio
ambiente não tem fronteiras e de que vivemos todos na mesma casa, o planeta
Terra.
A ocasião é propícia para suscitar ampla discussão
sobre os créditos de carbono e seus mercados, e de reconhecer que estão
instaladas no Polo Industrial de Manaus (PIM) empresas globalizadas, muitas
delas líderes mundiais em seus segmentos – como Coca-Cola, Honda, Samsung, LG
Eletronics, Gillette, Yamaha e outras – que podem ser parceiras em programas
privados com o respaldo dos governos de suas matrizes e da população mundial em
defesa da Amazônia.
São multinacionais que podem emprestar suas marcas,
pontos de venda e credibilidade mundial para angariar recursos destinados a
custear a preservação da floresta amazônica mediante a cobrança de alguns
centavos de dólar a mais no preço de varejo de cada unidade de seus produtos,
numa ampla campanha global em que o consumidor se sinta partícipe do esforço
global pela defesa dessa imensa reserva natural que já foi chamada de “pulmão
do mundo”.
A conta é simples. Apenas um centavo de dólar
cobrado a mais, como contribuição, em cada uma das 684 bilhões de unidades de
refrigerantes que a Coca-Cola vende anualmente no mundo inteiro, significará,
ao final, US$ 6,84 bilhões por ano para aplicação na preservação da Amazônia.
Fácil imaginar como esses recursos se multiplicarão se a mesma campanha
envolver produtos como água mineral, aparelhos de barbear, celulares,
televisores e motocicletas, dentre tantos outros comercializados mundialmente
pelas indústrias multinacionais com plantas em Manaus. “Save the Amazon forest”
seria um apelo internacional com ampla adesão.
Há outras possibilidades plausíveis na esteira do
que propôs Joe Biden. Um grande acordo entre as nações poderia estabelecer às
empresas emissoras de poluentes a compra compulsória de créditos de carbono em
Bolsas de Valores, a fim de resguardar a liquidez aos proprietários de áreas de
florestas nativas intactas na Amazônia.
É preciso convencer governos e organismos
internacionais para que realizem na Amazônia seus grandes eventos anuais,
trazendo recursos e despertando mais atenção para a região.
No campo comercial, governos dos países da América
do Norte, Comunidade Europeia e Japão, dentre outros, poderiam conceder tarifas
preferenciais na importação de produtos da Amazônia, como pescados, frutas (in
natura ou sucos), insumos para a indústria de cosméticos, etc, tudo com selos
ambiental e de inspeção sanitária, observando-se as exigências internacionais.
O primeiro passo é essencial para vencer a inércia
e transformar o discurso ambientalista em ações concretas para manter a
floresta em pé, com o envolvimento dos países ricos e com a atenção voltada
para quem mais protege a floresta: o povo amazônico.
Samuel Hanan - engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”.
https://samuelhanan.com.br