Esquema simplificado do experimento
para testar a complementaridade partícula-onda em um interferômetro com
controle quântico (imagem: Roberto Menezes Serra/UFABC)
Agora com mais de um século de existência e um
largo rastro de aplicações tecnológicas – do LED (sigla em inglês para diodo
emissor de luz) ao GPS (sigla em inglês para sistema de posicionamento global)
–, a física quântica foi, quando surgiu, um enorme desafio para a visão de
mundo dos cientistas envolvidos. Polêmicas apaixonadas pontuaram o seu
desenvolvimento – a mais importante delas travada nas décadas de 1920 e 1930
por dois gigantes da ciência: Albert Einstein (1879-1955) e Niels Bohr
(1885-1962).
A pauta da
discussão era a realidade física do mundo microscópico: molecular, atômico e
subatômico. Seria ela algo rigorosamente determinado, como parece acontecer nos
fenômenos macroscópicos da vida cotidiana, ou o próprio processo de observação
científica influenciaria as propriedades do sistema observado?
Einstein
defendia a ideia de que a realidade dos estados microscópicos independia do
contexto experimental. A dificuldade estava em conhecer essa realidade. Para
isso, seria preciso completar a teoria quântica, com a incorporação de
“variáveis ocultas”, até então ignoradas. Bohr, por outro lado, afirmava que os
sistemas quânticos apresentavam “aspectos mutuamente excludentes e
complementares”. Esses jamais poderiam ser acessados ao mesmo tempo em um arranjo
experimental. O processo de observação determinaria qual deles iria se
manifestar.
Há
controvérsia entre os historiadores da ciência sobre se essa discussão teve ou
não um vencedor. Mas, seja por seu valor intrínseco, seja por fatores
circunstanciais, a opinião de Bohr acabou predominando. E seu famoso “Princípio
da Complementaridade” – que constitui, junto com o “Princípio da Incerteza” de
Werner Heisenberg (1901-1976), o fundamento da chamada “interpretação de
Copenhague da mecânica quântica” – tornou-se amplamente aceito na comunidade
científica e fora dela.
Dito de
forma simplificada, o Princípio da Complementaridade afirma que não é possível
acessar completamente a realidade microscópica a partir de uma única
configuração. Tudo o que cabe à ciência dizer é como ela se comporta no
contexto de uma observação particular. E ela se comporta de maneira dual,
exibindo uma característica ou outra, dependendo de como o experimento é
realizado. Embora essas características sejam contraditórias e mutuamente excludentes
do ponto de vista clássico, é preciso considerar ambas para ter uma descrição
exaustiva do fenômeno.
A partir
de 2011, experimentos sofisticados foram feitos por diferentes grupos de
pesquisadores ao redor do mundo com o intuito de testar o Princípio da
Complementaridade de uma forma diferente da que havia sido realizada
anteriormente. E, neles, um fóton (partícula elementar da luz) pareceu
manifestar um comportamento híbrido, de partícula e onda ao mesmo tempo, no
mesmo arranjo experimental, aparentemente violando o pressuposto de Bohr.
Assim, foi proposta uma revisão radical do Princípio da Complementaridade
em experimentos quanticamente controlados.
Um novo trabalho, nessa linha de
investigação, foi realizado no Centro de Ciências Naturais e Humanas da
Universidade Federal do ABC (CCNH-UFABC). Os resultados foram divulgados recentemente
na revista Communications Physics.
“Nosso estudo teve duas grandes
motivações. A primeira foi verificar a validade do Princípio da
Complementaridade de Bohr em cenários de controle quântico. A segunda foi
aprofundar a investigação do realismo físico em experimentos quanticamente
controlados, para saber se apenas a estatística observada no experimento com
controle quântico seria suficiente para descrever uma narrativa precisa da
dualidade partícula-onda”, diz o físico Pedro Ruas Dieguez, primeiro autor
do trabalho e pós-doutorando no International Centre for Theory of Quantum
Technologies (ICTQT), ligado à Universidade de Gdansk, na Polônia, e à Academia
Austríaca de Ciências, na Áustria.
“Com uma
configuração experimental diferente da utilizada nos estudos feitos ao longo da
última década, verificamos experimentalmente e também por equações teóricas que
a determinação simultânea das duas propriedades, de partícula e onda, não se
sustenta. Mais ainda: que a impossibilidade de violar o Princípio de Bohr está
associada a uma importante propriedade quântica, o emaranhamento, um tipo de
correlação não clássica. Concluímos que correlações quânticas entre spins
produzidas em nosso experimento foram suficientes para demonstrar que os
realismos das interpretações partícula e onda jamais podem ser observados
simultaneamente, mesmo usando um controle quântico que possibilite interpolar
entre os dois comportamentos”, prossegue o pesquisador.
A dualidade partícula-onda
Para
entender esse resultado é necessário retroceder quase cem anos na história, até
1924, quando, em sua tese de doutorado, o físico e príncipe francês Louis de
Broglie (1892-1987) propôs uma equação que associa a qualquer corpo material
uma onda. Se a massa do corpo é muito grande, como ocorre com os entes
macroscópicos, o comprimento de onda se torna tão pequeno que escapa à
capacidade de detecção dos instrumentos de medida. Quando a massa é pequena,
porém, como acontece com moléculas, átomos e partículas subatômicas, as
características ondulatórias se tornam bastante expressivas.
A
comprovação experimental por excelência da proposição de De Broglie foi dada
pelo famoso “experimento das duas fendas”. O aparato experimental consiste em
uma fonte de elétrons que emite uma partícula de cada vez. As partículas só
podem passar através de duas fendas paralelas e incidem em um anteparo
recoberto com papel fotográfico. Se apenas uma das fendas é aberta, as
impressões produzidas no papel são características de impactos causados por
corpúsculos. Mas, quando as duas fendas são abertas simultaneamente, a figura
formada pelas impressões no papel apresenta o padrão típico do fenômeno de
interferência, que ocorre quando dois ou mais movimentos ondulatórios se
sobrepõem.
Uma
maneira experimentalmente mais sofisticada de observar a dualidade
partícula-onda é proporcionada pelo interferômetro de Mach-Zehnder de fóton
único. Nesse caso, o padrão de interferência aparece quando o dispositivo está
fechado e desaparece quando ele é aberto.
“Segundo
Bohr, a realidade de partícula ou onda só é estabelecida depois que todo o
arranjo experimental se encontra definido. O que aconteceria se fosse possível
escolher entre deixar o interferômetro aberto ou fechado somente depois que o
fóton já tivesse percorrido o caminho do interferômetro e, portanto, adquirido
o aspecto de partícula ou de onda? Foi este o interessante experimento proposto
pelo físico John Wheeler [1911-2008] para testar a validade do Princípio da
Complementaridade de Bohr”, conta Dieguez.
Wheeler apresentou sua proposta como
um experimento mental, que parecia ser muito difícil de realizar na prática.
Porém, esse teste, que ficou conhecido como "experimento de escolha
atrasada de Wheeler", acabou sendo feito de verdade quase 30 anos mais
tarde. E seus resultados foram publicados em 2007 na
revista Science.
“Eles
mostraram que, mesmo atrasando a escolha, o Princípio da Complementaridade
não era violado. Com o interferômetro aberto, o sistema quântico continuava a
se comportar como partícula. E, com o interferômetro fechado, se comportava
como onda. Portanto, explicitando o fato de que cada arranjo experimental,
interferômetro aberto ou fechado, estava associado a um aspecto, de partícula
ou de onda do sistema, respectivamente”, informa Dieguez.
O
Princípio da Complementaridade parecia estar a salvo. Mas é uma característica
do processo científico nunca descansar sobre os resultados alcançados. Assim,
em 2011, os físicos teóricos conceberam uma versão inteiramente quântica do
experimento de Wheeler. Agora, em vez de escolher de forma atrasada se o
interferômetro seria aberto ou fechado, os pesquisadores propuseram usar o
princípio de superposição quântica para construir um interferômetro que pudesse
estar aberto e fechado ao mesmo tempo.
Essa
situação, aparentemente paradoxal, é diferente do lançamento de uma moeda, na
qual existe a possibilidade de obter um de dois resultados excludentes: cara ou
coroa. No caso da superposição quântica, as duas possibilidades coexistem,
assim como duas ondas na superfície de um lago podem se sobrepor. Nessa nova
geração de experimentos, um sistema quântico adicional é utilizado para
controlar a configuração do interferômetro.
“Essa
proposta teórica deu origem a experimentos com controle quântico realizados por
grupos ao redor do mundo, incluindo um grupo experimental brasileiro. Os
resultados pareceram indicar algo surpreendente. Com base na capacidade de
interpolar suavemente as estatísticas entre um padrão de partícula e um padrão
de onda, os pesquisadores sugeriram a manifestação de comportamentos híbridos,
de partícula e onda, utilizando-se um mesmo aparato experimental para sua
detecção. Isso parecia contrariar, pela primeira vez na história, o Princípio
de Bohr, e resultou em uma série de discussões na literatura científica”,
relata Dieguez.
Nova configuração experimental
Foi esse
histórico que o levou a realizar, com colaboradores, o novo experimento agora
em pauta. “Nós empregamos um quantificador do grau de realismo físico de um
determinado estado quântico para uma certa característica observável. A partir
desse critério de realidade, mostramos que não havia conexão de fato entre a
estatística observada nos experimentos anteriores com os elementos de realidade
de partícula e onda. Este foi um ponto importante. A partir dele, fomos capazes
de argumentar que, em vez de revisar o Princípio de Bohr, deveríamos revisar
primeiro o próprio arranjo experimental usado nos experimentos de escolha
quântica atrasada”, afirma o pesquisador.
O grupo
propôs, então, uma outra configuração experimental para estabelecer a ligação
entre os resultados visíveis fornecidos pelo interferômetro, dados pela
estatística final, e os elementos de realidade de partícula e onda dentro do
dispositivo.
“Nós
implementamos essas ideias em um experimento de prova de princípio, usando
ressonância magnética nuclear [RMN], técnica similar à dos exames de imagem
usados em medicina. Nesse experimento, os spins [propriedade magnética das
partículas elementares análoga ao posicionamento da agulha de uma bússola] dos
núcleos de diferentes átomos em uma molécula de formato de sódio [HCO2Na] foram
manipulados com ondas de rádio”, descreve Dieguez.
O spin do
núcleo de carbono foi usado para controlar quanticamente um interferômetro,
utilizado para o spin nuclear do hidrogênio. O interferômetro estava associado
a duas configurações possíveis do hidrogênio, análogas a dois caminhos que
podiam ser percorridos. Dependendo do estado do núcleo de carbono, o
interferômetro podia estar aberto, fechado ou em uma superposição das duas
possibilidades.
“Esse controle do carbono sobre o
hidrogênio ocorre devido à interação entre ambos e pulsos de rádio
covenientemente utilizados [o cenário do experimento é
representado esquematicamente na figura que ilustra esta reportagem].
Ao final do experimento, a probabilidade de observação do spin do hidrogênio em
uma dada direção estava associada a uma diferença entre os dois caminhos do interferômetro
e ao seu controle quântico pelo spin do carbono. Esse novo arranjo experimental
produziu exatamente a mesma estatística final dos experimentos anteriores de
escolha atrasada quântica. No entanto, mostramos que na nova configuração os
elementos de realidade para partícula ou onda dentro do interferômetro estavam
formalmente associados à probabilidade medida. Diferentemente dos experimentos
realizados na última década, nossos resultados validam, uma vez mais, o
Princípio da Complementaridade de Bohr”, diz Dieguez.
E
arremata: “Concluímos que a correlação quântica entre os spins dos núcleos de
hidrogênio e carbono no experimento era suficiente para demonstrar que ambas
interpretações realistas, de partícula e de onda, jamais poderiam ser observadas
simultaneamente, mesmo usando um controle quântico que nos permitisse
interpolar entre os dois comportamentos. Tal resultado corrobora a ideia de que
a realidade física é descrita por aspectos mutuamente excludentes, mas que se
completam”.
O experimento foi realizado no
Laboratório Multiusuário de Ressonância Magnética Nuclear da Universidade
Federal do ABC. A equipe experimental, toda ela constituída por pesquisadores
brasileiros, foi liderada por Roberto Menezes Serra,
professor da UFABC. O trabalho contou também com a participação do
professor Renato Moreira Angelo,
da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Todo o
trabalho ocorreu durante a pandemia de COVID-19, respeitando e seguindo
estritamente as regras de segurança sanitária estabelecidas pela universidade.
A investigação contou com suporte
financeiro da FAPESP por meio do Projeto Temático “Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia em Informação Quântica”, coordenado por Amir Caldeira,
e da Bolsa de Pós-Doutorado “Efeitos Não-Clássicos em
Termodinâmica Quântica”, supervisionada por Serra.
O artigo Experimental assessment of physical realism in a
quantum-controlled device pode ser acessado em: www.nature.com/articles/s42005-022-00828-z.
José Tadeu
Arantes
Agência
FAPESP
https://agencia.fapesp.br/experimento-brasileiro-confirma-um-dos-principais-fundamentos-da-fisica-quantica/38777/