Sem dúvida, uma das lições mais básicas para uma
harmônica convivência social está sedimentada no princípio da legalidade, cujo
preceito, expresso em nossa Constituição Federal, dispõe que “ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art.
5º, inciso II, da CF/88).
A lei e as demais espécies normativas previstas no
artigo 59, da CF, portanto, são as únicas formas legítimas para autorizar que o
Estado determine e imponha comportamentos aos seus cidadãos. Referido princípio
é de suma relevância, porque é por seu intermédio que o cidadão pode se opor,
frontalmente, a “qualquer tipo de poder autoritário e a toda tendência de exacerbação
individualista e personalista dos governantes”[1]. Nota-se, portanto, que sob um primeiro enfoque, a legalidade
atua como verdadeiro óbice a eventuais arbitrariedades perpetradas pelo Poder
Público.
Em contrapartida, o referido princípio também
orienta a vida em sociedade, posto que, como a ninguém é permitido alegar
desconhecimento das leis, é certo que todos devem respeitar e seguir as normas
postas, ainda que delas discorde.
Seguramente, sem o princípio da legalidade, o
convívio social seria um caos, uma verdadeira desordem, pois cada um estaria
autorizado a fazer o que bem entendesse.
Sob um enfoque formal, pode-se afirmar que também
incumbe à legalidade determinar quais matérias específicas devem ser reguladas,
unicamente, por lei (stricto sensu), e, também, definir a
competência para legislar a respeito de determinados assuntos. Daí é que surge
o princípio da reserva legal, como corolário lógico da legalidade.
Foi, portanto, com estrita observância à reserva
legal que a nossa Carta Magna definiu, em seu artigo 22, quais matérias são de
competência legislativa privativa da União, que a exerce por intermédio do
Congresso Nacional. E, dentre aquelas, estão o “direito processual” (civil,
penal, trabalhista, tributário etc) e o “direito penal”.
Como é notório, o país atravessa uma grave crise
sanitária e econômica, como consequência direta da pandemia causada pelo novo
coronavírus. Lamentavelmente, o número de óbitos vem crescendo de forma
alarmante e, em paralelo, as taxas de desemprego e a ruína de diversos negócios
e empresas, também têm aumentado exponencialmente.
Dentro desse contexto, as atividades desenvolvidas
pelo Poder Judiciário vêm sofrendo profundo impacto, afinal, fóruns ainda
continuam fechados, audiências foram canceladas, e, por óbvio, no meio disso
tudo, o jurisdicionado acaba sendo muito prejudicado no seu sagrado direito de
acesso à Justiça.
Contudo, consoante expressa previsão
constitucional, “a atividade jurisdicional será ininterrupta” (art. 93,
inciso XII) e, além disso, é essencial. Logo, apesar da pandemia, faz-se
necessário retomar as atividades judiciais (sobretudo as audiências e os
julgamentos). Para tanto, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cujas
competências vêm expressamente descritas no §4º, do artigo 103-B, da CF/88, tem
buscado, de um lado, regulamentar a atuação do Poder Judiciário durante esse
duro período pelo qual atravessamos, e, de outro, propor alternativas viáveis
para a paulatina retomada da prestação jurisdicional.
Vale ressaltar que, como o isolamento social ainda
continua sendo a melhor alternativa para evitar o contágio, a adoção de novas ferramentas
tecnológicas tem sido a melhor saída para compatibilizar, de um lado, a
segurança de todos que transitam pelo ambiente forense e, de outro, a
necessidade da efetiva distribuição de Justiça a quem precisa.
Assim, foi em nome da segurança que, lamentavelmente,
a Justiça passou a atuar de forma cada vez mais distante do cidadão, na exata
medida em que o “antigo” modelo presencial passou a ser substituído pela forma
virtual, na qual tudo é feito por intermédio da tela de um computador. E foi
justamente nesse contexto, no qual impera o “distanciamento”, que as audiências
por “videoconferência” ganharam força e espaço.
Ocorre que, em tempos de pandemia, o nosso sistema
jurídico tem sofrido verdadeira invasão de “Procedimentos”, “Portarias”,
“Resoluções”, “Comunicados” etc., os quais, muito embora não tenham força de
lei, acabaram norteando a atuação dos operadores do Direito em geral. E, como
se não bastasse, é preciso considerar que, longe de existir uma uniformidade
nesse “direito paralelo pandêmico”, cada tribunal resolveu baixar suas próprias
determinações internas, assim criando inusitadas inovações procedimentais que,
na maior parte dos casos, mostraram-se avessas às regras processuais vigentes.
Foi então que, em meio a essa miscelânea de
regulamentos que o CNJ, a partir de atos normativos de duvidosa legalidade,
decidiu adotar a videoconferência como alternativa aos atos processuais
presenciais. Esse assunto foi inicialmente abordado pela Portaria/CNJ n. 61, de
31 de março de 2020, cujo texto, apesar de ter instituído “a
plataforma emergencial de videoconferência para realização de audiências e
sessões de julgamento nos órgãos do Poder Judiciário, no período de isolamento
social, decorrente da pandemia Covid-19”, não autorizou o uso
indiscriminado daquela ferramenta.
Ao depois, a videoconferência voltou a ser abordada
na Resolução/CNJ n. 314, de 20 de abril do ano corrente, quando, então, foram
delegadas aos Tribunais estaduais tanto a incumbência de disciplinar o trabalho
remoto de magistrados e servidores, quanto a tarefa de promover, “de forma
colaborativa com os demais órgãos do sistema de justiça”, a
realização “de todos os atos processuais, virtualmente” (art.
6º).
Por sua vez, no último dia 01/06/2020, foi
publicada a Resolução/CNJ n. 322, cujo escopo foi o de definir “regras
mínimas para a retomada dos serviços jurisdicionais presenciais no âmbito do
Poder Judiciário nacional”. Referida Resolução, ao tratar das
audiências por videoconferência, estabeleceu, no seu artigo 5º, inciso IV, que,
durante a chamada “primeira etapa” da retomada dos trabalhos presenciais, “as
audiências serão realizadas, sempre que possível, por videoconferência, (...),
possibilitando-se que o ato seja efetivado de forma mista, com a presença de
algumas pessoas no local e participação virtual de outras”.
Analisando-se o texto daquela Resolução, nota-se
que o CNJ não determinou a adoção geral e irrestrita da videoconferência, mas,
apenas, a realização de atos processuais “de forma mista”, para assim permitir a
retomada gradual dos serviços forenses presenciais. Afinal, a prestação
jurisdicional não pode prescindir do salutar contato pessoal tanto entre os
operadores do Direito quanto, principalmente, entre o jurisdicionado e o Juiz
da causa.
Contudo, lamentavelmente é fato que, a partir da
flexibilização autorizada pelo CNJ, diversos Tribunais do País passaram a
permitir, em meio ao chamado “Sistema Remoto de Trabalho”, que as audiências de
instrução passassem a ser realizadas por videoconferência, indiscriminadamente.
Entretanto, ao menos na seara do Direito Processual
Penal, essa prática é manifestamente ilegal.
Isso porque o nosso C.P.P. prevê, expressamente,
apenas três únicas situações nas quais a videoconferência pode ser adotada. São
elas: a-) artigo 185, §2º, que trata, especificamente, da realização do
interrogatório judicial do acusado preso; b-) art. 217, que é
específico para situações nas quais a testemunha não queira depor na presença
do acusado; e, c-) art. 222, §3º, cujo preceito é específico para o caso de
testemunha residente fora da Comarca do Juízo processante.
Ou seja, a Lei Adjetiva Penal limitou, de forma
clara e expressa, as poucas hipóteses nas quais a videoconferência pode ser
utilizada.
Nesse ponto, cumpre sempre lembrar que as regras
procedimentais estabelecidas no nosso Código de Processo Penal têm evidente
viés garantista. Afinal, a estrita obediência às formalidades processuais (due process
of law) deve ser vista tanto como garantia inerente à salvaguarda
do sagrado direito de ir e vir do cidadão quanto, também, como proteção ao
jurisdicionado, na exata medida em que lhe garante um processo justo, regulado
por regras claras e precisas.
A propósito do assunto, ROBERTO DELMANTO JUNIOR é
enfático ao asseverar que o processo penal deve ser compreendido não como um
meio para que a punição seja aplicada, mas, sim, como um verdadeiro mecanismo
de “tutela
da liberdade jurídica do ser humano, consubstanciando-se, antes de mais nada,
em um instrumento da liberdade que surge como complemento dos direitos e
garantias individuais, impondo limites à atuação estatal, em cumprimento do seu
dever de prestar jurisdição”[2]
Sendo assim, é inegável que as audiências por
videoconferência, da forma como alguns Tribunais as vêm realizando, não
encontra amparo na legislação processual penal.
É forçoso reconhecer, portanto que, exceção feita
àquelas poucas hipóteses expressamente previstas no C.P.P., o uso
indiscriminado da videoconferência viola o devido processo legal, afronta a
ampla defesa e, principalmente, desafia a legalidade.
Positivamente, à luz do nosso C.P.P., as tais
audiências de instrução por videoconferência representam verdadeira afronta ao
Texto Constitucional. Ao cabo de contas, de um lado, em virtude do princípio da
reserva legal, é cediço que o CNJ e as Cortes Estaduais não possuem competência
legislativa em matéria processual e, de outro, é óbvio que “Provimentos”,
“Portarias”, “Resoluções” e demais papeluchos, não têm força de lei.
Logo, se há mesmo interesse no uso (e abuso) da
videoconferência ao longo da instrução dos feitos criminais, é preciso ou haver
prévia, e expressa, concordância das partes (o que, infelizmente, não é levado
em consideração), ou, então, que o legislador competente altere a lei
processual penal, a fim de regulamentá-lo. Fora isso, o que temos, hoje, é um
método canhestro e ilegal de audiência, que viola garantias constitucionais e
mitiga o sagrado direito de defesa (sobretudo, a autodefesa do acusado).
Euro Bento Maciel Filho; Antônio Carlos de Almeida
Castro - Kakay e Roberta Cristina Ribeiro de Castro Queiroz
Referências:
DELMANTO JUNIOR, Roberto. As
Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração. 2 ed. São
Paulo: Renovar, 2001.
MENDES, Gilmar Ferreira e VALE, André Rufino do. Comentários
à Constituição do Brasil. 1 ed. 3 tiragem. São Paulo: Saraiva - Almedina,
2013.
Antônio Carlos de Almeida Castro – Kakay é advogado
criminalista
Roberta Cristina Ribeiro de Castro Queiroz é advogada
criminalista
Euro Bento Maciel Filho é mestre
em Direito Penal pela PUC/SP. Também é professor universitário, de Direito Penal
e Prática Penal, advogado criminalista e sócio do escritório Euro Maciel Filho
e Tyles – Sociedade de Advogados.
Para saber mais, acesse - http://www.eurofilho.adv.br/ pelas
redes sociais - @eurofilhoetyles; https://www.facebook.com/EuroFilhoeTyles/
, ou envie e-mail para atendimento@eurofilho.adv.br
[1] MENDES, Gilmar Ferreira e VALE, André Rufino do. Comentários
à Constituição do Brasil. 1 ed. 3 tiragem. São Paulo. Saraiva -
Almedina, 2013, p. 244.
[2] DELMANTO JUNIOR, Roberto. As
Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração. 2 ed. São
Paulo: Renovar, 2001, pp. 03/04.