Meninas e crianças pequenas são as mais
afetadas, e novos desafios como a violência digital ampliam a urgência da
mobilização coletiva
Imagem gerada por IA
A violência contra crianças e adolescentes segue como um dos maiores desafios sociais e de saúde pública no Brasil. Levantamento do Hospital Pequeno Príncipe, referência no atendimento infantojuvenil em situações de violência, revela uma realidade alarmante: nos últimos dez anos, o número de atendimentos praticamente dobrou, acompanhando a tendência de crescimento registrada em todo o país.
Entre 2014 e 2024, os atendimentos saltaram de 378 para 720 casos anuais. No total, mais de dez mil crianças e adolescentes, de 0 a 17 anos, passaram por avaliação médica na instituição com suspeita de violência nas últimas duas décadas.
Segundo
os dados, a maioria das agressões ocorre no âmbito doméstico. Em 2024, 72% dos
casos atendidos no Hospital Pequeno Príncipe foram classificados como violência
intrafamiliar – agressões cometidas por membros da própria família, como pais,
padrastos e irmãos, ou por pessoas próximas, como cuidadores. A violência
sexual foi o tipo mais frequente, respondendo por 58% dos atendimentos. A maior
parte dos agressores identificados era do sexo masculino (67%), e as meninas
representaram 71% das vítimas.
Primeira Infância: o grupo mais vulnerável
Em 2024, o Hospital Pequeno Príncipe atendeu 474 crianças de até 6 anos, das quais 309 – 65% – foram acolhidas por suspeita de violência sexual. A maioria das vítimas era menina, com casos graves envolvendo bebês com apenas 4 meses.
Especialistas apontam que a Primeira Infância (0 a 6 anos) é um período de alta vulnerabilidade. Crianças pequenas são particularmente expostas à violência devido à sua imaturidade cognitiva e emocional, dependência total de adultos para cuidados e proteção, e dificuldade de verbalizar situações de abuso. A combinação desses fatores torna essa fase crítica, em que agressões podem ocorrer de forma silenciosa e devastadora.
Estudos de neurodesenvolvimento indicam que as experiências nos primeiros anos de vida moldam a arquitetura do cérebro. A exposição precoce à violência é considerada um estresse tóxico, que pode afetar o funcionamento neurológico e aumentar o risco de problemas futuros, como transtornos de saúde mental, dificuldades de aprendizagem e doenças crônicas.
Organizações
como o UNICEF, a OMS e o Center on the Developing Child, da Universidade de
Harvard, reforçam que a proteção da Primeira Infância é essencial para promover
sociedades mais saudáveis e reduzir desigualdades.
Cenário nacional: a violência de gênero começa na infância
Os dados do Hospital Pequeno Príncipe refletem uma realidade observada em todo o país. Segundo o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, cerca de 200 crianças são agredidas diariamente no Brasil. De acordo com o UNICEF e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), uma criança ou adolescente é vítima de abuso sexual a cada oito minutos. Em 88% desses casos, o agressor é do sexo masculino.
A disparidade de gênero é evidente: meninas são sete vezes mais vítimas de violência sexual do que meninos, revelando padrões culturais de desigualdade que começam na infância. A OMS e a ONU Mulheres alertam que a construção social que naturaliza a vulnerabilidade feminina desde a infância perpetua ciclos de abuso e violência ao longo da vida.
Esse
cenário aponta a urgência de políticas públicas que protejam as crianças e
promovam mudanças culturais profundas, desconstruindo estereótipos de gênero
desde os primeiros anos de vida.
Novos desafios: a violência digital
A crescente presença de crianças e adolescentes no ambiente digital trouxe novos riscos à sua integridade. Pesquisa da SaferNet e da TIC Kids Online aponta que um em cada 11 jovens já foi vítima de cyberbullying, e mais de 53 mil denúncias de crimes sexuais on-line envolvendo infantojuvenis foram registradas em 2024. Além disso, 30% das crianças entrevistadas disseram ter interagido com desconhecidos pela internet, ampliando sua exposição a riscos.
Embora
o Pequeno Príncipe ainda não tenha registrado atendimentos diretos por
violência digital, a instituição reconhece a gravidade do cenário. Em 2025, a
campanha Pra Toda Vida incluirá, pela primeira vez, tópicos como
cyberbullying, assédio on-line e exposição a conteúdos nocivos. A inclusão
desses temas na campanha visa a garantir que a proteção integral de crianças e
adolescentes também aborde o ambiente virtual, uma extensão cada vez mais
relevante da vida social das novas gerações.
Tendência de crescimento contínuo
A análise dos dados do Hospital Pequeno Príncipe revela uma tendência alarmante de aumento nos casos de violência, inclusive após o pico da pandemia de COVID-19. Esses números reforçam a necessidade de políticas públicas mais robustas voltadas à proteção de crianças e adolescentes, além da ampliação das redes de apoio e denúncia.
Um dos dados mais alarmantes é o crescimento do número de crianças acolhidas em abrigos: foram sete neste ano, contra apenas duas em 2023 – um aumento de 250%. O acolhimento é uma medida extrema, adotada apenas quando a permanência da criança em casa representa risco à sua vida ou integridade física e não há familiar que possa garantir sua segurança.
Além
da maior frequência, os casos também têm se mostrado mais graves. O número de
crianças com lesões provocadas por violência subiu de 128 para 205, uma elevação
de 60%. Muitas dessas lesões envolvem fraturas. Também aumentaram os
internamentos, que passaram de 103 para 135, um salto de 31%. Esses dados
indicam um cenário de violência mais intensa. Um caso emblemático e preocupante
foi o de uma bebê de apenas 29 dias entre as vítimas atendidas e que precisou
ser internada.
Pra Toda Vida
O Hospital Pequeno Príncipe atua há mais de 50 anos no atendimento a vítimas de violência. A instituição tem uma equipe multiprofissional treinada para identificar, acolher e cuidar de crianças vítimas de violência, com o objetivo de mitigar danos imediatos e apoiar trajetórias de vida mais seguras. O protocolo de atendimento especializado inclui assistência médica, psicológica e social.
Desde 2006, desenvolve a Campanha Pra Toda Vida, cujo propósito é sensibilizar, informar e mobilizar a sociedade sobre a importância de prevenir e enfrentar a violência infantojuvenil. A campanha integra ações como a capacitação de profissionais de saúde e educação, bem como a disseminação de materiais educativos para crianças e adolescentes.
A
iniciativa conta também com o apoio da sociedade, com a mobilização de
influenciadores digitais, posts nas redes sociais e divulgação na imprensa.
Informações e materiais de apoio podem ser acessados por meio do hotsite da
campanha.
Como a sociedade pode contribuir
A proteção de crianças e adolescentes é uma responsabilidade coletiva. O Pequeno Príncipe acredita que a união de esforços entre indivíduos, organizações e poder público é fundamental para reduzir os casos de violência e transformar a vida daqueles que enfrentam situações de risco. Cada atitude conta para a construção de um ambiente mais seguro e acolhedor.
A denúncia – que pode ser feita, anonimamente, por vizinhos, familiares e conhecidos – pode ser a única chance de socorro. Os canais para denunciar são: Disque 100 (nacional), Disque 181 (Paraná) e Disque 156 (Curitiba).
Sinais
de que uma criança está sendo vítima de violência podem ser físicos ou
psicológicos, como mudanças bruscas de comportamento, irritabilidade,
distúrbios alimentares e de sono, autolesões, queda no rendimento escolar e
marcas físicas como hematomas, lesões e fraturas. No ambiente digital,
comportamentos como isolamento após o uso de dispositivos ou exclusão repentina
de contas podem indicar cyberbullying ou abuso virtual.
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