Brasil registrou 1.450 feminicídios em 2024, o maior número da história. Especialistas afirmam que o problema vai além da violência física: trata-se de um colapso das referências sobre gênero, poder e relações.
O Brasil bateu um recorde preocupante
em 2024: 1.450 mulheres foram mortas por feminicídio, crime motivado por
gênero, quase sempre cometido por parceiros ou ex-parceiros. Só no Rio Grande
do Sul, o feriado da Páscoa teve dez assassinatos de mulheres em nove cidades. O que está por trás desses números que insistem em
crescer, apesar dos avanços legislativos?
Para a psicanalista Camila Camaratta, o feminicídio é mais
do que uma tragédia individual — é o sintoma de uma sociedade doente. “Trata-se
de uma falência simbólica. O sujeito, sem recursos para elaborar frustração ou
rejeição, age. Mata porque não suporta que o outro exista sem ser dele”,
afirma.
Segundo dados da ONU Mulheres, 60% dos feminicídios no mundo
ocorrem dentro da própria casa. Já a OMS e o UNODC (escritório das Nações
Unidas sobre drogas e crime) apontam fatores como normas patriarcais, ciúmes
doentios, sentimento de posse, histórico de violência na infância e cultura que
ainda naturaliza a agressividade masculina como causa do fenômeno.
“No Brasil, ainda há homens que entendem a autonomia da
mulher como afronta. Como se a liberdade feminina fosse uma ameaça direta ao
que entendem como masculinidade”, explica Camaratta. Ela cita também o impacto
de discursos tóxicos propagados em redes sociais e fóruns online — como incels,
grupos redpill e os chamados "legendários" — que promovem a ideia de
que a mulher deve submissão ao homem.
A especialista afirma que o feminicídio, nesses casos, é uma
tentativa radical de restaurar um suposto controle que, na verdade, nunca
existiu. “É o colapso do simbólico. O sujeito não suporta a perda, a
frustração, o desejo do outro, e age de forma crua. Sem mediação, sem palavra.”
Não é só crime: é construção cultural
Além das estatísticas, a psicanálise observa o que está por
trás do ato violento: uma construção histórica e emocional precária. A
violência, nesse contexto, não nasce do nada. É resultado de uma combinação explosiva
entre fatores psíquicos, sociais e culturais — que vão desde vínculos
familiares frágeis até discursos ultrapassados sobre o que significa “ser
homem”.
O Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (RASEAM 2025)
mostra que, além dos 1.450 feminicídios, outros 2.485 homicídios dolosos ou
lesões seguidas de morte de mulheres foram registrados em 2024. Ainda que
represente uma leve queda de 5% em relação a 2023, o trauma persiste.
“Não se trata apenas de endurecer leis — algo fundamental —
mas de construir novas referências simbólicas. Homens precisam de novas
narrativas sobre o que é força, o que é vínculo, o que é perda. Enquanto isso
não acontece, seguimos expostos à brutalidade do ato sem palavra”, diz a
psicanalista.
Ela cita o pediatra e psicanalista Donald Winnicott, que já
alertava: quando o ambiente falha na infância, o sujeito pode não desenvolver
recursos psíquicos para lidar com frustrações. Em outras palavras: a ausência
de suporte emocional pode se transformar em tragédia na vida adulta.
Legítima defesa da honra não é mais aceita — mas o
preconceito, sim
Apesar de avanços recentes, como o veto do STF ao uso da
chamada “legítima defesa da honra” nos tribunais, Camaratta alerta que o
preconceito contra mulheres ainda pesa no julgamento dos feminicídios. Muitos
casos são levados ao júri popular, onde visões machistas ainda podem
influenciar decisões.
“O número pode cair, mas o trauma permanece. E só muda se a
cultura mudar. Enquanto a mulher for vista como ameaça, e não como
interlocutora legítima, seguiremos produzindo violência”, conclui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário