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sábado, 10 de maio de 2025

Por que tantos homens ainda matam mulheres? Psicanálise aponta falência simbólica por trás do feminicídio

Brasil registrou 1.450 feminicídios em 2024, o maior número da história. Especialistas afirmam que o problema vai além da violência física: trata-se de um colapso das referências sobre gênero, poder e relações.

 

O Brasil bateu um recorde preocupante em 2024: 1.450 mulheres foram mortas por feminicídio, crime motivado por gênero, quase sempre cometido por parceiros ou ex-parceiros. Só no Rio Grande do Sul, o feriado da Páscoa teve dez assassinatos de mulheres em nove cidades. O que está por trás desses números que insistem em crescer, apesar dos avanços legislativos?

Para a psicanalista Camila Camaratta, o feminicídio é mais do que uma tragédia individual — é o sintoma de uma sociedade doente. “Trata-se de uma falência simbólica. O sujeito, sem recursos para elaborar frustração ou rejeição, age. Mata porque não suporta que o outro exista sem ser dele”, afirma.

Segundo dados da ONU Mulheres, 60% dos feminicídios no mundo ocorrem dentro da própria casa. Já a OMS e o UNODC (escritório das Nações Unidas sobre drogas e crime) apontam fatores como normas patriarcais, ciúmes doentios, sentimento de posse, histórico de violência na infância e cultura que ainda naturaliza a agressividade masculina como causa do fenômeno.

“No Brasil, ainda há homens que entendem a autonomia da mulher como afronta. Como se a liberdade feminina fosse uma ameaça direta ao que entendem como masculinidade”, explica Camaratta. Ela cita também o impacto de discursos tóxicos propagados em redes sociais e fóruns online — como incels, grupos redpill e os chamados "legendários" — que promovem a ideia de que a mulher deve submissão ao homem.

A especialista afirma que o feminicídio, nesses casos, é uma tentativa radical de restaurar um suposto controle que, na verdade, nunca existiu. “É o colapso do simbólico. O sujeito não suporta a perda, a frustração, o desejo do outro, e age de forma crua. Sem mediação, sem palavra.”


 Não é só crime: é construção cultural

Além das estatísticas, a psicanálise observa o que está por trás do ato violento: uma construção histórica e emocional precária. A violência, nesse contexto, não nasce do nada. É resultado de uma combinação explosiva entre fatores psíquicos, sociais e culturais — que vão desde vínculos familiares frágeis até discursos ultrapassados sobre o que significa “ser homem”.

O Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (RASEAM 2025) mostra que, além dos 1.450 feminicídios, outros 2.485 homicídios dolosos ou lesões seguidas de morte de mulheres foram registrados em 2024. Ainda que represente uma leve queda de 5% em relação a 2023, o trauma persiste.

“Não se trata apenas de endurecer leis — algo fundamental — mas de construir novas referências simbólicas. Homens precisam de novas narrativas sobre o que é força, o que é vínculo, o que é perda. Enquanto isso não acontece, seguimos expostos à brutalidade do ato sem palavra”, diz a psicanalista.

Ela cita o pediatra e psicanalista Donald Winnicott, que já alertava: quando o ambiente falha na infância, o sujeito pode não desenvolver recursos psíquicos para lidar com frustrações. Em outras palavras: a ausência de suporte emocional pode se transformar em tragédia na vida adulta.


 Legítima defesa da honra não é mais aceita — mas o preconceito, sim

Apesar de avanços recentes, como o veto do STF ao uso da chamada “legítima defesa da honra” nos tribunais, Camaratta alerta que o preconceito contra mulheres ainda pesa no julgamento dos feminicídios. Muitos casos são levados ao júri popular, onde visões machistas ainda podem influenciar decisões.

“O número pode cair, mas o trauma permanece. E só muda se a cultura mudar. Enquanto a mulher for vista como ameaça, e não como interlocutora legítima, seguiremos produzindo violência”, conclui.


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