A elaboração do orçamento público é um dos
principais mecanismos para a efetivação de políticas sociais, viabilizando a prestação
de serviços essenciais e a promoção dos direitos fundamentais garantidos pela
Constituição Federal. Todo e qualquer direito possui um custo econômico, de
modo que o sistema tributário atua como uma via de mão dupla: de um lado,
arrecada tributos para financiar o Estado; de outro, provê bens e serviços à
sociedade.
Nesse contexto, a forma como os tributos são
cobrados e os recursos orçamentários são alocados impacta de maneira distinta
os diversos grupos sociais, especialmente em um país como o Brasil, marcado por
acentuadas desigualdades de renda, gênero e raça. O mês de março e o Dia
Internacional da Mulher representam um momento oportuno para o reforço desse
debate, que já existe há muito tempo e que deve continuar por todo o ano.
O desafio não é recente e a perspectiva de gênero
no orçamento público já é adotada por diversos países, como México, Equador, El
Salvador e Bolívia, conforme estudo do Fundo Monetário Internacional. No
Brasil, avanços ocorreram desde 2003, com a criação da Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres e, posteriormente, com os Planos Plurianuais (PNP)
que incorporaram diretrizes para a redução das desigualdades de gênero.
Mesmo assim, a execução orçamentária ainda enfrenta
desafios para garantir a efetividade das políticas de gênero. Isso se agrava
dentro da estrutura tributária brasileira, caracterizada não só pela maior
tributação sobre o consumo, como pela isenção de impostos sobre os mais ricos,
com destaque para lucros e dividendos, o que afeta de maneira desproporcional
mulheres negras e de baixa renda. Elas estão na base da nossa pirâmide social,
com 64% dos lares chefiados por mulheres negras abaixo da linha da pobreza,
conforme apontado por relatório elaborado pelo Instituto Justiça Fiscal em
2023.
Dados da Receita Federal demonstram que tributação
sobre bens e serviços contribui para cerca de 45% da arrecadação, enquanto a
participação da tributação de renda é de, apenas, 21%. A tributação sobre a
propriedade, por seu turno, gira em torno de 4,5% da arrecadação tributária
total.
Ao analisar a distribuição de rendimentos no
Brasil, é possível observar, ainda, que as mulheres negras dependem
predominantemente de salários provenientes de empregos formais ou informais,
enquanto os homens brancos possuem uma parcela significativa de sua renda
oriunda de outras fontes, como lucros e dividendos. A própria remuneração
decorrente de salários, por sinal, também é desigual: de acordo com um
relatório divulgado pelo projeto Mude com Elas em 2024, o salário recebido por
mulheres negras no Brasil é 47% menor do que a média dos salários recebidos por
homens brancos.
Dessa forma, a estrutura da tributação de renda no
Brasil, que incide de forma mais pesada sobre rendimentos do trabalho e menos
sobre rendimentos do capital, acaba por perpetuar e até ampliar as disparidades
de renda existentes entre mulheres negras e homens brancos, o que indica a
necessidade urgente de uma reforma sobre renda e patrimônio. Para isso,
Isabelle Rocha, em seu livro "Tributação e Gênero: como o Imposto de Renda
da Pessoa Física afeta as desiguldades entre homens e mulheres", sugere
que ações como o aumento dos limites de dedução com dependentes e com instrução
e a atualização da faixa de isenção do IRPF são um bom começo para a redução da
desigualdade.
De forma adicional, políticas públicas
complementares, como programas de transferência de renda, cotas em
universidades, disponibilização de creches, políticas de impedimentos do pink tax,
revisão de regras de licença para cuidado dos filhos recém-nascidos, ampliando
a licença paternidade e incentivando a participação dos homens no cuidado
familiar, assim como incentivos ao empreendedorismo feminino, são essenciais
para mitigar os efeitos regressivos do sistema tributário.
Com relação à própria tributação sobre o consumo,
também não é preciso ir muito longe para entender como esse problema se agrava
para as mulheres: atualmente, a carga tributária dos preservativos masculinos,
por exemplo, é de 9,25%, enquanto a das pílulas anticoncepcionais é de 30% e do
DIU, de 32,45%, uma tributação três vezes maior, conforme estudo elaborado por
Luiza Menezes em 2023 sobre a tributação de produtos ligados ao trabalho de
cuidado e à fisiologia feminina.
Nesse contexto, a promulgação da EC 132/2023, que
aprovou a Reforma Tributária sobre o consumo, já é um marco importante, ao
prever expressamente que “as alterações na legislação tributária buscarão
atenuar efeitos regressivos”. Ainda no âmbito da Reforma, a recém aprovada Lei
Complementar nº 214/2025 traz avanços ao reduzir a zero as alíquotas de
produtos essenciais para a saúde menstrual, como absorventes e coletores
menstruais, e instituir alíquota reduzida para fraldas infantis e geriátricas,
assim como para preservativos e dispositivos intrauterinos.
A mencionada Reforma também instituiu a previsão de
avaliação quinquenal dos benefícios e regimes tributários específicos do IBS e
da CBS, disciplinando expressamente que tal avaliação “deverá considerar,
inclusive, o impacto da legislação do IBS e da CBS na promoção da igualdade
entre homens e mulheres e étnico-racial.” É um começo, mas ainda há muito a ser
feito: a inclusão de armas e munições no imposto seletivo, por exemplo, ficou
de fora da Reforma, representando uma perda não só pela diminuição da
arrecadação de tributos sobre esses bens, como também pelo potencial aumento de
gasto público para o sistema de saúde com vítimas de armas de fogo e da
violência contra mulheres.
A promoção da justiça fiscal deve ser acompanhada
da efetivação de um orçamento público que contemple as especificidades de
gênero e raça, garantindo equidade na distribuição dos recursos e o
fortalecimento da cidadania fiscal para todas as mulheres brasileiras.
Os dados aqui apresentados deixam claro que a
igualdade não pode ser concebida apenas sob a ótica formal, que pressupõe um
tratamento idêntico a todos, sem considerar as desigualdades estruturais que
moldam a sociedade. A igualdade substantiva, por sua vez, busca corrigir essas
distorções, garantindo que o sistema jurídico e tributário reflita a realidade
social e promova justiça fiscal.
No contexto constitucional, essa abordagem é
essencial para interpretar normas e estruturar um modelo tributário alinhado ao
pacto democrático. Somente ao articular os princípios da Constituição com o
reconhecimento concreto das desigualdades de gênero será possível construir uma
tributação mais justa e compatível com os ideais de equidade que o ordenamento
jurídico brasileiro se propõe a garantir.
*Paola de Castro Esotico é
advogada há 15 anos, pesquisadora de Tributação e Gênero (FGV/SP), especialista
em Direito Tributário e Mestra em Processo Civil (PUC/SP). Com uma atuação
voltada para o contencioso e o consultivo tributário, Paola oferece serviços
jurídicos especializados com foco em mulheres e pequenos e médios negócios.
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