De acordo com o relatório “Depressão e outros
transtornos mentais”, da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é o país
com maior prevalência de depressão na América Latina, uma vez que a doença
atinge 5,8% da população brasileira (1). Considerando todo o continente
americano, estamos atrás somente dos Estados Unidos (1). Em complemento, dados
da Organização Panamericana da Saúde (OPAS) mostram que por volta de 37% dos
Anos Vividos com Incapacidade (AVI) no país podem ser atribuídos a doenças
mentais, transtornos neurológicos, abuso de substâncias e suicídio,
representando a maior proporção do continente (2). E essa realidade não deve
mudar tão cedo, pois os números de diagnóstico só crescem ano a ano. Estudo do
Ministério da Saúde prevê que, nos próximos anos, até 15,5% da população
brasileira pode sofrer depressão ao menos uma vez ao longo da vida (3).
Com cerca de 70% da população tendo o SUS como
referência para o atendimento à saúde mental, a atenção básica é fundamental no
processo de cuidado. Felizmente, já existe um aparato no SUS para atender
pessoas com sofrimento mental: a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que traz
a proposta de oferecer cuidados em quatro níveis. O primário, em que as
Unidades Básicas de Saúde (UBS) estão incluídas, recebe pessoas com as mais
diversas necessidades de suporte e, por isso, os profissionais devem ser bem
treinados. No nível secundário de assistência, estão os ambulatórios de saúde
mental e os centros de atenção psicossocial, nos quais profissionais com
formação na área trazem cuidados interdisciplinares. Casos com maiores riscos
ou mais complexos são encaminhados para hospitais gerais, psiquiátricos ou
universitários, configurando os níveis terciários e quaternários de cuidado
(4). Portanto, a RAPS é uma rede tão bem planejada que mereceria um artigo só
sobre isso. No entanto, ela ainda enfrenta diversas dificuldades de
investimento e gestão, refletindo negativamente no atendimento aos
pacientes.
Observando a dinâmica da saúde suplementar,
conhecida popularmente como convênios médicos, o cenário também preocupa. Não
há uma organização sistematizada para assistência em saúde mental, ficando o
atendimento reservado a médicos e psicólogos que, por diferentes razões,
atendem os pacientes com tempo muito reduzido e sem contato com outros
profissionais de saúde mental (5).
Entre as causas da alta incidência de depressão no
Brasil, estão a dificuldade de acesso a tratamento na rede pública, o forte
estigma que a doença carrega até mesmo entre os profissionais de saúde e a
falta de um protocolo de atendimento aos pacientes (3). E o maior desafio de
todos: os próprios profissionais de saúde estão em sofrimento. Estudos
internacionais indicam que os médicos têm uma probabilidade aumentada de
desenvolver transtornos mentais, incluindo depressão e ansiedade, que podem
estar associados a um maior risco de suicídio (6).
Ou seja, o cenário é preocupante, entretanto mais
preocupante ainda é o fato de que não há uma política nacional estruturada para
capacitação e suporte adequado a esses profissionais, a fim de estimular um
atendimento padronizado aos pacientes e de reduzir os estigmas das doenças
mentais. Existe um hiato substancial de tratamento na saúde mental por conta da
ausência de investimento na área. Cerca de 60% das verbas para esses serviços
na América Latina ainda são destinadas a hospitais psiquiátricos, cuja práticas
são eficazes somente em casos graves muito específicos e com risco de vida (7).
Enquanto isso, as diferentes áreas da Rede de Atenção Psicossocial continuam
com recursos e apoio escassos (8).
Sabendo desse problema, a Associação Brasileira de
Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos (ABRATA) e outras
entidades do terceiro setor, bem como algumas universidades, tomam o
protagonismo nessa frente (9). São essas organizações que se dedicam a oferecer
educação em saúde, suporte emocional e treinamentos para que os profissionais
de saúde da rede pública saibam atender casos complexos de saúde mental que
fogem do seu cotidiano.
Mas, com a prevalência de transtornos mentais cada vez maior e a falta de investimento público, é preciso pensar em um envolvimento multissetorial para alavancar essas iniciativas. A união e parceria do terceiro setor com organizações privadas, comunidade e outros setores pode nos ajudar a virar essa página tão dolorida para os brasileiros, criando soluções que contribuam para a melhoria da realidade da saúde mental do país e aumentem o alcance dos treinamentos e suporte aos profissionais de saúde. Precisamos nos apoiar nos dados científicos e epidemiológicos, na criação de protocolos e, principalmente, na cobrança por políticas públicas.
Dr. Volnei Costa - psiquiatra e presidente do Conselho Científico da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos
Referências
- Organização
Mundial da Saúde. Depressão e outros transtornos mentais”. Disponível em https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/254610/WHO-MSD-MER-2017.2-eng.pdf?sequence=1. Fevereiro de 2017.
- Organização
Panamericana da Saúde. Ônus dos Transtornos de Saúde Mental nas Américas:
Perfis Nacionais. 2020
- G1
Globo. Por que o Brasil tem a população mais depressiva da América Latina.
Disponível em https://g1.globo.com/saude/noticia/2023/11/06/por-que-o-brasil-tem-a-populacao-mais-depressiva-da-america-latina.ghtml.
Novembro 2023.
- Redes
de atenção à saúde: Rede de Atenção Psicossocial – RAPS/ Paola Trindade
Garcia; Regimarina Soares Reis (Org.). - São Luís: EDUFMA, 2018.
- IBGE.
Pesquisa nacional de saúde : 2019 : informações sobre domicílios, acesso e
utilização dos serviços de saúde : Brasil, grandes regiões e unidades da
federação / IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento. 2019
- Dutheil,
F. Aubert, C. Pereira, B. Dambrun, M. Moustafa, F. Mermillod, M. Baker, J.
Troursselard, M. Lesage, F. Navel, V. Suicide among physicians and
health-care workers: A systematic review and meta-analysis. Disponível em https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/31830138/. 2019.
- FP
Analytics. Para uma mudança de paradigma em saúde mental na América
Latina. Disponível em https://fpanalytics.foreignpolicy.com/2023/03/27/toward-a-paradigm-shift-on-mental-health-in-latin-america/. Setembro de
2023.
- IEPS.
Falta de visibilidade dificulta monitoramento de recursos destinados à
Saúde Mental; indicativo é de escassez orçamentária. 2023
- Observatório
do Terceiro Setor. Transtorno bipolar: organização acolhe e informa a sociedade
sobre o distúrbio mental. Disponível em: https://observatorio3setor.org.br/noticias/transtorno-bipolar-organizacao-acolhe-e-informa-a-sociedade-sobre-o-disturbio-mental/. Março de 2023
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