As cinzas foram mergulhadas em um líquido que
simula a vinhaça para a avaliação da metodologia
foto: Milena Maria Antonio
Método transforma o resíduo da produção de etanol em fertilizante rico em potássio e nitrogênio. Trabalho pioneiro da UFSCar foi divulgado no Journal of Environmental Management
O Brasil é responsável por 8%
do consumo mundial de fertilizantes, sendo o potássio o principal nutriente
aplicado nas lavouras. Cerca de 96% do potássio que o país consome é importado,
segundo dados recentes do governo federal. Entretanto, é possível obter esse
mineral a partir de resíduos da indústria sucroenergética, como a vinhaça.
“Em 150 metros cúbicos de
vinhaça encontramos, em média, 340 quilos de potássio. Importamos esse insumo,
sobretudo nitrato de potássio, enquanto jogamos fora uma imensa quantidade
dele. Além do desperdício, é uma situação que nos deixa vulneráveis, até mesmo
a conflitos, como, por exemplo, a guerra da Ucrânia, país que tradicionalmente
nos fornece o fertilizante”, resume a química Roselena Faez, professora titular da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus de Araras.
Com seus orientandos do
Programa de Pós-Graduação em Agricultura e Ambiente, Faez vem tentando
encontrar meios de reutilizar o potássio e o nitrogênio da vinhaça, gerada em
enormes quantidades pela indústria da cana. Para cada litro de etanol produzido
são gerados de 12 a 18 litros de vinhaça.
Em um dos trabalhos, Faez e sua
orientanda de mestrado Milena Maria Antonio usaram as cinzas resultantes da
queima do bagaço da cana para retirar esses nutrientes da vinhaça. O estudo
foi publicado no Journal
of Environmental Management e contou com o apoio da
FAPESP.
Cinzas
O bagaço da cana-de-açúcar é
fonte de energia para a indústria, que queima o material. A cientista ressalta
que essa combustão acontece em altos-fornos, sem parâmetros controlados, e gera
basicamente dois resíduos: fuligem e cinzas. “O interessante das cinzas é que
elas têm material carbonáceo, consistindo em uma parte de carbono e também
sílica. Trata-se de um material poroso, que ajuda no processo de adsorção.
Existem vários projetos para uso desse resíduo, principalmente como aditivo
para material cerâmico, tijolo, asfalto. Mas utilizar as cinzas não modificadas
para recuperar nutrientes da vinhaça é algo inédito.”
Ela explica que as cinzas, com
um perfil heterogêneo, compreendem vários tipos de partículas, do ponto de
vista estrutural. Podem ser irregulares, esféricas, tubulares fibrosas ou
prismáticas. As tubulares fibrosas apresentam maior porção carbonácea, as
angulosas irregulares têm grande proporção de sílica. “Além de grande
porosidade, essas partículas têm grupos hidroxilas e grupos carbonilas com
cargas negativas que interagem com as cargas positivas dos íons em que estamos
interessados [de potássio e nitrogênio]. Assim, além das interações físicas
proporcionadas pela porosidade [adsorção], há também interações químicas
[absorção].”
De acordo com Faez, muitas
pessoas trabalham para melhorar a capacidade de sorção (adsorção e/ou absorção)
das cinzas com modificação superficial das partículas ricas em sílica. “É
possível adicionar outros grupos químicos ali, mas esse trabalho adicional não
era desejável. A intenção era pegar dois resíduos brutos e saber o que a gente
conseguiria fazer com eles, num processo com o menor gasto energético possível
e que gerasse dois produtos interessantes. Assim, usamos as cinzas após simples
lavagem e secagem. Partimos do princípio de que, quanto menos processamento for
necessário, mais fácil será convencer a indústria sucroalcooleira a inserir
essa nova etapa no processo produtivo.”
Vinhaça
O rejeito representa um
problema por demandar muito oxigênio para decompor a matéria orgânica, tanto
quimicamente quanto bioquimicamente (com a ajuda de microrganismos). Muito rica
em potássio (aproximadamente 4 mil partes por milhão a cada 100 mililitros),
além de fósforo e nitrogênio, é comumente usada como fertilizante, sendo jogada
diretamente no solo, às vezes diluída. “Colocada diretamente no campo, que é o
que geralmente se faz, pode provocar acidificação e salinização do solo.”
As normativas existentes exigem
que a vinhaça seja tratada antes de empregada para tal finalidade. No Estado de
São Paulo, maior produtor brasileiro de cana-de-açúcar, a aplicação da vinhaça
no solo agrícola foi regulamentada pela Norma Técnica P 4.231,
editada pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) em 2005.
“Entre os cientistas, já existe
muita gente pensando na vinhaça, sempre no sentido de diminuir sua demanda
bioquímica. Entretanto, não encontramos nenhum trabalho com o objetivo de reutilizar
seus nutrientes”, garante Faez.
Segundo ela, a vinhaça é a
continuação do processo de destilação e contém muitos compostos que vão gerando
ácidos orgânicos ao longo do caminho. “Assim, no processo de sorção, certamente
também estamos retirando outros componentes da vinhaça.”
As cientistas conseguiram não
somente recuperar os nutrientes desejados, mas melhorar a própria vinhaça.
“Melhoramos a sua acidez, deixando-a com o pH neutro, próximo a 7, graças ao
caráter alcalino das cinzas. Além disso, demonstramos com sucesso o potencial
das cinzas como sorvente de nutrientes eficazes para o tratamento da vinhaça.”
Elas começaram identificando as
condições ideais de sorção usando, para isso, uma solução que simulava a
vinhaça. As cinzas, mergulhadas no líquido, foram deixadas em uma mesa de
agitação. Chegaram à proporção de 2,5 gramas (g) de cinzas e 6 horas (h) de
tempo de contato entre as cinzas e o líquido.
Após a identificação das
condições ideais de sorção, dois testes foram realizados com a vinhaça in
natura. Primeiro, 2,5 g de cinzas e 100 mL de vinhaça foram misturados em
condições predeterminadas por 6 e 24 horas. O segundo teste foi um processo de
três etapas que totalizou 72 horas, com as cinzas sendo substituídas a cada
etapa.
“No primeiro, usamos a menor
quantidade possível de cinzas no tempo mais curto possível para avaliar a
concentração dos íons de interesse. E vimos que, se deixássemos as mesmas
cinzas na vinhaça por um período longo, como 24 horas, o processo não se
mostrava eficiente. Então, fizemos um segundo teste, de 72 horas, em bateladas,
trocando as cinzas a cada 24 horas.”
As cinzas ricas em potássio e
nitrogênio resultantes do processo podem ser usadas como fertilizante, enquanto
da vinhaça foi retirado seu caráter ácido, o que deve reduzir o impacto
negativo para o solo. “Outra aluna está começando a avaliar o uso da vinhaça
tratada no solo e seu efeito em comparação à não tratada”, adianta Faez.
Segundo a cientista, a ideia de
sustentabilidade deu início a um processo revolucionário, no qual os ciclos
produtivos não podem mais ficar abertos, devendo se fechar sem deixar pegadas.
“Mas isso é histórico: a história da química é assim. Hoje, nosso grande
problema é minimizar o uso de recursos minerais. E os fertilizantes que usamos
são obtidos por mineração. Além disso, o uso excessivo desses compostos tem
impacto. Não podemos perder mais nada, não existe mais resíduo. Aliás, essa
palavra é imprópria. Resíduo é oportunidade e não problema.”
O artigo Unlocking
Agronutrient Resources: Sorption Strategies for sugar-energy industry waste pode
ser lido em: www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0301479724006200?via%3Dihub.
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/cientistas-usam-cinzas-geradas-pela-queima-do-bagaco-da-cana-para-recuperar-nutrientes-da-vinhaca/52577
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