Como a maioria de
nós, cresci com uma certa cegueira que me impedia de perceber as nuances de
gênero que a sociedade nos impõe. Tudo parecia ser uma questão de mérito e
recompensa, bastando apenas colocar esforço pessoal para conquistar sucesso!
Para mim, se quisesse ser bem-sucedida em uma área ocupada majoritariamente por
homens, bastaria entender como as coisas funcionam na cabeça deles e me
comportar um pouco mais como eles e então eu poderia ser qualquer coisa e fazer
o que quisesse.
Em 2012, comecei a
trabalhar como estagiária de mesa de operações, setor do mercado financeiro
onde ocorrem as transações de compra e venda de ações, títulos de renda fixa,
derivativos, commodities e moedas. Perguntas muito diretas que me fizeram
durante a entrevista me instigaram, como “Você se sentiria bem em trabalhar em
um lugar onde todos podem te me mandar tomar no c* a qualquer momento?”. Também
me chamou a atenção a maneira como me elogiaram na entrevista “até que você foi
bem para uma mulher”, fui notando essas situações e acumulando anedotas desse
ambiente de trabalho.
Algumas das coisas
que ouvi durante minha experiência incluíam pessoas dizendo que não contratavam
gays na área porque seriam um “risco jurídico” já que os funcionários fazem
muitas piadas com a homossexualidade, como se o problema fosse a pessoa
ofendida e não os ofensores. Ouvi de outras empresas que eles não contratavam
mulheres, porque “não queriam enfraquecer a mesa de operações”, e que se fosse
para contratar alguma teria que ser solteira e sem filhos pois “a mulher depois
que casa tem que dar atenção à família”.
Após pouco mais de
um ano trabalhando como trader e substituir um dos meus chefes
no seu período de férias, recebi uma boa avaliação e comentei que poderíamos
ter mais mulheres na mesma área. Como resposta, ouvi que isso era bobagem, que
eu era uma exceção e não era qualquer mulher que conseguiria estar ali. Talvez
eu estivesse sendo inocente em acreditar que mostraria aos homens que qualquer
mulher com interesse e esforço poderia ocupar aquele espaço, mas era o que
pensava quando tinha 22 anos e tive uma grande frustração ao não alcançar meu
propósito de alterar essa mentalidade no curto prazo. Decidi sair e foquei meus
últimos dois anos da graduação em pesquisar o tema.
Para entender a
situação das mulheres no mercado financeiro, precisei primeiro entender o
contexto das mulheres na sociedade, na família e no acesso à educação formal e
financeira. A construção do lugar da mulher como cuidadora, facilitadora
emocional e responsável pelo trabalho invisível (seja doméstico ou na cozinha
do escritório) me ajudou a entender por que era sempre delas que esperavam
servir o café e acolher os sentimentos da equipe. As barreiras e dúvidas
impostas a mulheres para estudar carreiras consideradas masculinas e para obter
independência financeira me ajudaram a entender porque somos tão poucas no
mercado de capitais.
Quanto mais eu
estudava sobre a mentalidade machista da sociedade, mais as anedotas que havia
acumulado iam fazendo sentido e ganhando contornos antropológicos. Por exemplo,
ao dizer que eu teria “ido bem para uma mulher” o entrevistador não estava
apenas trazendo um elogio relativo e impreciso (já que ao final fui contratada
e, portanto, meu desempenho foi bom no geral), também estava demonstrando quão
baixa era sua expectativa em relação ao desempenho de uma candidata mulher.
Ao entrevistar
mulheres e homens que ocupavam posições de negócios em bancos de investimento e
corretoras, percebi que a minha vivência não era exceção, embora talvez tivesse
sido mais verbalmente explícita em alguns casos. Todas as mulheres que
entrevistei passaram por alguma situação em que seu gênero era notado de forma
negativa, seja no trabalho do dia-a-dia ao receber pedidos para falar “mais
grosso” ou na hora de receber o bônus anual ao ter como feedback
“embora tenha tido o melhor desempenho, não podemos dar o maior valor pois você
ficou 4 meses de licença maternidade e soaria mal com o resto da equipe”.
Um achado
surpreendente no processo de pesquisa foi que muitos homens também não estão
satisfeitos com o ambiente de trabalho misógino, porque qualquer coisa que
façam fora da caixinha da masculinidade é rechaçado. Por exemplo, sair um pouco
mais cedo para levar o filho ao pediatra e ouvir “é sua mulher que deveria
levar”. Também havia quem sonhasse em ter um filho e pudesse passar mais do que
5 dias em casa para estabelecer vínculo com a família, mas tinha medo pois o
chefe não havia ficado nem 3 dias fora na mesma situação e desincentivava os
outros dizendo “não tenho o que fazer em casa, é minha mulher que amamenta”,
como se o único trabalho na adaptação de um recém-nascido fosse esse.
Em 2013, quando
começava meus estudos de gênero, as mulheres representavam 25% dos CPFs
cadastrados na bolsa de valores, de acordo com a B3, enquanto que as
profissionais do mercado financeiro com certificação CFA representavam menos
de 10% dos certificados. A Forbes fez um
levantamento das profissões mais sexistas de acordo com diferença salarial e,
acreditem se quiserem, caminhoneiro figura em décimo lugar enquanto que
assessor de investimento pessoal em primeiro lugar e traders
de ações e commodities em segundo.
Dez anos depois,
as notícias não são melhores: em 2023 as mulheres representam 23% dos CPFs na
B3 e apenas 11% dos titulares de CFA no Brasil. Nesse período nós tivemos a
quarta onda do feminismo, caracterizada pelos movimentos de mulheres contra o
assédio e violência sexual, em favor da igualdade salarial e em direitos
parentais, além do uso extensivo das redes sociais para mobilizar essas
demandas. No setor financeiro, bancos e associações lançaram programas para
aumentar o recrutamento de jovens mulheres e também para prepará-las para
cargos de liderança, como o YouWin e o Dn’A Women.
Recentemente,
tivemos também o maior envolvimento de lideranças políticas e corporativas na
agenda de diversidade e inclusão, em que uma série de mudanças institucionais
começa a vingar, como a aprovação no Senado do projeto de lei que
fiscaliza a igualdade salarial e as novas regras da B3 para
que empresas de capital aberto incluam pelo menos uma mulher e uma pessoa de
grupos minorizados em seus conselhos de administração. Todas essas medidas são
urgentes e necessárias para começar, porém não suficientes para igualar as
oportunidades diante do quadro real: os alicerces da disparidade de gênero são
muito mais profundos do que as canetadas organizacionais alcançam.
Um bom exemplo
dessa profundidade é o estudo da Harvard Business Review sobre
avaliações de desempenho anuais, que mostra que as mulheres são 1,4 vezes mais
propensas a receber feedback subjetivo negativo. Isso significa que, ao
comparar uma profissional mulher a um homem no mesmo cargo, com o mesmo salário
e nível educacional, as mulheres ainda têm maior chance de receber uma
avaliação subjetiva desfavorável, pois é na subjetividade que mora o viés de
gênero, por exemplo ter a percepção de que “João se sente mais à vontade do que
Carol ao lidar com o cliente”.
A parte mais difícil
do desafio não está no desenho institucional, mas sim na organização social, no
modo de ver o mundo e o papel de homens e mulheres nele. Independente de
quantas ondas de feminismo criarmos ou quantas políticas conseguirmos aprovar
em sociedade ou corporações, se a mentalidade e a cultura das pessoas não
mudarem no mesmo ritmo estaremos sempre enxugando gelo em relação à equidade de
gênero.
Itali Collini - economista, Investidora
Anjo e diretora da Potencia Ventures
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