Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) identificaram uma nova classe de moléculas capaz de frear a inflamação exacerbada típica da forma grave de COVID-19 sem prejudicar a resposta imune contra o vírus SARS-CoV-2.
Em experimentos com camundongos, os pesquisadores demonstraram que, ao
bloquear a ligação de um peptídeo chamado C5a em seu receptor celular (a
proteína C5aR1), a inflamação desencadeada pela tempestade de citocina é
reduzida. Os resultados foram divulgados no The Journal of Clinical Investigation.
“Estamos estudando essa via já há alguns anos para dor neuropática e
doença autoimune. E, quando surgiu a pandemia, logo desconfiamos que bloquear o
receptor celular desse peptídeo [C5a] também poderia ser interessante contra a
inflamação associada à COVID-19 grave. Isso porque sabemos que, apesar de o C5a
ter um papel pró-inflamatório importante, essa via não tem grande atuação no
combate à infecção. Trata-se de um mediador que, se bloqueado, não compromete a
resposta do indivíduo contra o vírus”, explica Thiago Mattar Cunha,
professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) e integrante
do Centro de Pesquisa em Doenças
Inflamatórias (CRID)
– um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID)
da FAPESP.
Durante a
pandemia ficou evidente que a COVID-19 pode ter uma variação grande no que se
refere à gravidade. Enquanto alguns pacientes apresentam sintomas leves ou são
assintomáticos, parte dos infectados pelo SARS-CoV-2 desenvolve uma inflamação
sistêmica potencialmente fatal desencadeada por uma resposta imune exacerbada –
conhecida como tempestade de citocinas. Nesses casos, os pacientes geralmente
passam dias internados em terapia intensiva, com necessidade de ventilação
mecânica, e apresentam complicações como fibrose pulmonar e trombose.
Cunha
explica que o C5 é um mediador inflamatório presente no plasma sanguíneo e
integra o chamado sistema do complemento – parte da resposta imune responsável
por formar a “cascata” de proteínas que induz uma série de respostas
inflamatórias que visam combater a infecção.
Quando
ocorre uma inflamação, o peptídeo é ativado (tornando-se a molécula C5a) e
passa a ter função pró-inflamatória. “Esse aumento da produção de C5a está
ligado a uma série de doenças inflamatórias, como sepse, artrite reumatoide,
doença inflamatória do intestino, lúpus, psoríase e também a lesão pulmonar
observada em casos graves de COVID-19”, afirma.
Estudos
anteriores do CRID já haviam demonstrado que uma das principais vias
relacionadas com a lesão pulmonar nos pacientes com COVID-19 era a netose –
danos teciduais causados por um mecanismo imune chamado NET (sigla em inglês
para rede extracelular neutrofílica), que consiste na saída do material
genético contido no núcleo dos neutrófilos (um tipo de leucócito) em forma de
redes, que são lançadas pelas células de defesa para o meio extracelular na
tentativa de prender e matar bactérias.
Mas foi só
após desenvolverem camundongos transgênicos, suscetíveis à COVID-19 e com o
gene codificador da proteína C5 inativado, que os pesquisadores puderam
elucidar o mecanismo pelo qual a via C5a participa da lesão pulmonar e da
inflamação exacerbada observada em pacientes com a forma grave da doença.
De acordo com Cunha, foi possível observar no modelo animal que, quando
os neutrófilos chegam ao pulmão do paciente, começam a liberar as NETs, que são
lesivas tanto aos patógenos quanto às células do organismo. “É, portanto, uma
via que está não apenas envolvida na morte de células epiteliais – o que
demonstramos num dos nossos primeiros trabalhos sobre o tema –, como também
possivelmente associada às inflamações por tromboembolia no pulmão dos
pacientes com COVID-19”, explica o pesquisador (leia mais em: agencia.fapesp.br/33435/).
O achado
confirma o papel imunopatológico da sinalização C5a/C5aR1 na COVID-19 e indica
que os antagonistas de C5aR1 (moléculas que bloqueiam a ligação com o receptor)
podem ser úteis para o tratamento dos casos graves.
“São
várias ações acontecendo. O peptídeo C5a atua aumentando a formação das NETs.
Já o neutrófilo é recrutado para o pulmão porque há uma produção intensa de
citocinas nessa fase da doença. E o C5a ativa ainda mais os neutrófilos no
pulmão que, quando ficam superativados, produzem mais NETs. Com tudo isso, é
provável que a via esteja envolvida na amplificação da lesão e da inflamação
pulmonar”, avalia o pesquisador.
Desde antes do surgimento da COVID-19, o grupo do CRID já vinha
colaborando com a farmacêutica italiana Dompé no desenvolvimento de moléculas
capazes de bloquear o receptor C5aR1. Parte do trabalho foi publicada na
revista Proceedings of the National Academy of Sciences of the United
States of America (PNAS) em 2014 (leia mais em: agencia.fapesp.br/20387/).
“No nosso
estudo recente, os camundongos que receberam os antagonistas de C5aR1
apresentaram melhora da inflamação. Também demonstramos que, ao bloquear esse
sistema, o controle da infecção não é alterado, ou seja, a carga viral
continuou a mesma entre os animais que foram tratados com o antagonista e os
que não foram”, diz.
Melhorar a
inflamação sem impactar a carga viral é um atributo importante da nova
molécula. Isso porque, atualmente, uma das principais estratégias para tratar a
COVID-19 é o uso de corticoides, medicamentos com ação anti-inflamatória e
imunossupressora. Essa classe de fármacos, portanto, reduz a resposta imune
contra o SARS-CoV-2 e também contra infecções secundárias, como a pneumonia
bacteriana, por exemplo.
Apesar de os pesquisadores do CRID terem feito apenas experimentos em
animais, Cunha conta que um estudo publicado no
final do ano passado na revista Lancet por
grupos europeus lançou luz sobre os benefícios de bloquear a via C5a/C5aR1 em
humanos. No estudo, o grupo descreveu o resultado de testes clínicos de fase 3
com o uso de anticorpo monoclonal contra o peptídeo C5a, mostrando ser uma
estratégia viável para combater a inflamação exacerbada da COVID-19.
“Quando o
anticorpo se liga à molécula de C5a, ele impede a ação no receptor. Isso
significa que os testes clínicos estão trabalhando na mesma via que estamos
estudando, sinal de que estamos no caminho certo”, comenta Cunha.
A vantagem
da estratégia brasileira é que o custo do tratamento com antagonistas do
receptor C5aR1 é muito mais baixo do que a terapia com anticorpos monoclonais.
“Os dados
desse estudo nos dão evidências clínicas de que bloquear a via C5a/C5aR1
funciona, é um tratamento benéfico. Já trabalhamos com essa via para doenças
autoimunes e dor. Acredito que o próximo passo seja iniciar testes clínicos com
a molécula antagonista”, comenta.
O artigo C5aR1 signaling triggers lung immunopathology
in COVID-19 through neutrophil extracellular traps pode ser
lido em: www.jci.org/articles/view/163105.
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/composto-testado-na-usp-reduz-inflamacao-da-covid-19-sem-comprometer-a-resposta-imune-ao-virus/41322/
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