Foto: Ilustração: Rafaela Repasch |
No percurso entre o relato do crime virtual e o julgamento dos casos de violência semiótica contra a mulher, surge a produção de uma narrativa fundamental que fará parte do processo: o Boletim de Ocorrência (BO). A vítima narra e a escrivã registra (prioritariamente mulheres exercem essa função nas delegacias de defesa da mulher) dentro do espaço limitado do documento e de acordo com as formas discursivas normatizadas do BO. Interpretação, empatia, emoção, entre outros sentimentos e circunstâncias fazem com que a violência semiótica original (materializada nos elementos de prova como fotos e prints) passe por uma ressignificação (ressemiotização) que dará a forma final do relato a ser julgado. Qual o funcionamento desse processo que reúne tantas vozes? A vítima tem se beneficiado destas narrativas? O texto narrado é suficiente?
Com o propósito de estudar o percurso do registro
policial sobre casos de violência semiótica contra a mulher em redes sociais
online, a escrivã, bacharel em Direito e licenciada em Letras pela Unicamp
Camila Rebecca Busnardo, orientada pelo professor Marcelo El Khouri Buzato, do
Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, desenvolveu a dissertação
de mestrado “Tecendo vozes e BOs: a ressemiotização da violência semiótica
contra a mulher em redes sociais online”.
“Meu cotidiano no trabalho me deixava intrigada em
relação a essa tarefa da figura da escrivã, de redigir todas as infinitas
histórias e narrativas das pessoas que passam por lá. Há uma interpretação, uma
necessária empatia também, no esforço de traduzir, de uma maneira realista,
dando conta de evidenciar o sofrimento que a pessoa está ali contando”, diz
Camila, que desde 2017 é escrivã da Polícia Civil na Delegacia de Defesa da
Mulher de Americana (SP). “Como escrivã, eu sabia da importância da confecção
do BO para que o processo fosse levado à investigação, ao julgamento e à
condenação.”
O mais inovador da pesquisa, diz o professor, é focar
o estudo não no conteúdo do BO de violência contra a mulher, mas no percurso de
traduções da imagem para a escrita, além de trabalhar a ideia de que o real e o
virtual não são coisas separadas.
No início do mestrado de Camila, ainda não existia
a delegacia online especializada em crimes cometidos contra a mulher. “Isso foi
desenvolvido especialmente durante a pandemia, quando aconteceu um ‘boom’ da
violência contra a mulher e houve um aprimoramento neste tipo de registro
remoto pela Polícia Civil”, explica ela.
Hoje, a vítima pode fazer o Registro Digital de
Ocorrência (RDO) remotamente ou ir pessoalmente à delegacia. Quando o registro
não é feito presencialmente na delegacia, também é possível anexar arquivos. O
sistema é informatizado nas duas situações, mas, no presencial, existe a figura
da escrivã.
O professor Buzato lembra que o perfil linguístico
de um diálogo entre duas mulheres acontece de forma diferente. “É uma outra
empatia.” De acordo com o orientador, nenhum sistema semiótico consegue traduzir
o outro totalmente. “Você ganha ou perde alguma coisa.” Nesse caso de
elaboração do BO, a narrativa pode tirar a força ou acentuá-la. “A escrivã traz
a voz da vítima para dentro da polícia. Ela está no meio de um processo que
começa por uma violência, passa por uma reclamação, daí vira esse registro, que
é a porta de entrada semiótica, o primeiro documento que o delegado vai ler.
Mais para frente, isso vai entrar num processo judicial em uma sentença pela
qual o acusado pode ir para a cadeia.” As questões, segundo o docente,
são: como acontece o manejo destas vozes? Como a voz da escrivã entra no BO?
Como ela tem que fazer quando fala com a voz da Justiça? É um texto que parece
pouco, mas, como ela está na porta de entrada de um mundo para o outro, esse
manejo é importante.
Portanto, conclui a pesquisadora, o estudo dessa
mediação realizada pelo escrivão deve conter informações importantes para que o
sistema de registro de ocorrências possa ser otimizado. Quando feita
corretamente, a confecção do BO garante o início da persecução criminal,
contribuindo para o esclarecimento dos delitos e a identificação de seus
autores. A força do texto dá suporte à promotoria e ao juiz para condenar o
criminoso.
Trabalho qualitativo
Para realizar seu estudo sobre de que forma a
violência verbal é ressemiotizada nas narrativas dos BOs, Camila selecionou 20
BOs registrados na Delegacia de Defesa da Mulher de Americana (SP), entre 2018
e 2019. Os casos envolviam violações à dignidade humana perpetradas no ambiente
virtual, caracterizando violência semiótica contra a mulher
mediadas pela tecnologia, ou seja, por meio do uso das redes sociais e seus
recursos, entre os quais, mensagens, imagens, instantâneos de tela, áudios,
vídeos, compartilhamentos de conteúdos etc.
De acordo com a pesquisadora, não existem formas
específicas de registro desse tipo de agressão e a tipificação de crime de
violência semiótica na legislação é muito recente. No entanto, os registros,
pelos quais signos linguísticos ferem a honra subjetiva da mulher,
têm crescido em número nas delegacias. “Isso faz recair sobre a figura do
escrivão de polícia a responsabilidade por fazer o ‘ajuste fino’ entre o relato
do crime em seu contexto virtual de ocorrência e as formas discursivas
normatizadas e já convencionadas dos BOs, isto é, atuar na sua
ressemiotização”, analisa Camila.
Violência semiótica
A noção de violência semiótica com a qual Camila
trabalhou na sua pesquisa é a de produção de sentidos por meio de artefatos
multimodais e audiovisuais, como gestos, imagens, áudios e vídeos, que
perpetram a violência contra a mulher, desde o constrangimento moral até o dano
à honra da vítima.
Os casos são de mulheres humilhadas em redes
sociais, muitas vezes com a exposição de sua intimidade — por meio da
publicação de fotos em que estejam nuas, por exemplo — ou com a ameaça de
exposição, vulnerabilizando ou intimidando a mulher. Trata-se de crimes em que
a tecnologia propicia a reprodução do machismo estrutural nos meios virtuais.
Nesse sentido, a escrivã é voz presente na narrativa do BO porque, muitas vezes, precisa mesclar o uso da linguagem técnica [jargão policial] com assistência à vítima em seu relato. “Escrever, por exemplo, ‘fiquei muito magoada e chorei’, não interessa [no registro]. Entretanto, se você coloca, ‘ele me ameaçou’ ou ‘ele postou no Facebook uma foto apontando uma arma e dizendo que minha hora vai chegar’, isso muda o caso”, conclui Camila.
Adriana Vilar de Menezes
Edição de imagem: Paulo Cavalheri
Fonte: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/682/uma-narrativa-que-pode-salvar-vidas
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