Podemos estar livres de preconceitos? Não creio, ainda que tenhamos horror a nos identificar como preconceituosos. Afinal, como nos admitir com tais modos? Mas, antes de formular recusa ao argumento, pensemos com a ajuda do dicionário. Conforme o Houaiss, preconceito é “qualquer opinião ou sentimento concebido sem exame crítico; sentimento hostil, assumido em consequência da generalização apressada de uma experiência pessoal ou imposta pelo meio”.
O Aurélio reitera:
“Preconceito: Conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior
ponderação ou conhecimento dos fatos; ideia preconcebida. Julgamento ou opinião
formada sem se levar em conta o fato que os conteste. Superstição, crendice”.
Quer dizer: avalio um acontecimento com posições valorativas prévias, tendo
meus valores como métrica. No correr da História pessoas mataram e morreram por
crenças, religiosas, sobretudo, sem controvertê-las.
Como está visto, então, se
formamos sentimento ou opinião sobre algo sem o devido exame crítico,
sentiremos ou opinaremos com preconceito. Exato? E se uniformizamos nossos
sentimentos e opiniões, se os recebemos acriticamente do meio social em que
vivemos, estaremos, igualmente, sendo preconceituosos, não é verdade? E mais:
se, sem análise percuciente de posição, sentirmos e opinarmos com hostilidade,
já estaremos machucando pessoas, de acordo?
O mais danoso do
preconceito, contudo, não está no intolerante que ostenta com violência suas
concepções ou insulta quem pensa diversamente. Quando a atitude preconceituosa
é assumida pelo agente, posso identificá-la, desprezá-la ou respondê-la. O que
tenho por difícil de combater é o jeito não hostil de formar, divulgar,
perpetuar preconceitos. Os aparelhos ideológicos de formatação e reprodução de
preconceitos são a forma sutil, sorrateira e não percebida desse mal.
Louis Althusser é o
formulador da concepção de aparelhos ideológicos como meio de produzir e
reproduzir modos de pensar, ou seja, de perpetuar concepções previamente
estabelecidas sobre o mundo. Althusser explica que o Estado detém meios
repressivos para manter determinado status quo, mas que igualmente instituições
da sociedade civil cumprem esse papel na manutenção de um determinado estado de
coisas, incluindo os valores que fundamentam as nossas opiniões.
Essas instituições de
“fazer cabeças” são o aparelho religioso, o escolar, o familiar, o jurídico, o
político, o cultural, o de informação. No correr da vida, somos expostos a
esses sistemas, que nos selecionam, premiando-nos por comportamento adequado,
excluindo-nos se não seguimos a maioria. E nós nem suspeitamos disso,
empenhando-nos voluntariamente a reproduzir um sistema de produção de
preconceitos que nos acabam parecendo, e até sendo, tão indispensáveis.
Estamos, pois, todos nós,
submetidos a uma máquina ideológica de uniformizar. Essa máquina dominadora
opera formando uma unidade hegemônica que nos alcança generalizadamente; é
difícil pensar criticamente sobre ela ou sobre seus efeitos, exatamente porque
seus efeitos somos nós e o que nós pensamos. Seja, nós pensamos sobre o sistema
social em que estamos inseridos a partir da formatação recebida do sistema
social em que estamos inseridos.
Que fazer? Não há receita
de salvação contra o sistema. Eu, pelo menos, não sei formulá-la. Todavia há
coisas já sabidas que nos podem ser úteis. Dois pensadores iluministas colaboram.
Diderot: “A ignorância não fica tão distante da verdade quanto o preconceito”;
Rousseau: “Prefiro mais ser um homem de paradoxos do que um homem de
preconceitos”. O ignorante e o paradoxal estariam, pois, melhormente
posicionados contra “verdades” que o “médio” esclarecido?
Essa é a questão: o
pensamento “senso comum” lavrado nas instituições ideológicas listadas por
Althusser; em regra, são uma ampla coletânea de explicações simplificadoras.
Para Diderot o ignorante não sabe, já o “senso comum” sabe preconceitos, e
preconceitos não são facilmente removíveis. Diderot não propõe que nos
deseduquemos, está claro, mas que discutamos as origens de nossas crenças, que
suspeitemos de nossos valores (Genealogia da Moral, Nietzsche).
Rousseau não
nos almeja desbussolados, apenas sem tantas certezas: que não fixemos
compromisso com o que pensamos; que desconfiemos, que troquemos nosso pensar,
se não conseguirmos fundamentá-lo racionalmente. Preconceito é, mesmo, uma
soberba e uma falta de posição (auto)crítica. Não sejamos, pois, hostis para
com as variadas concepções de mundo. Ideias têm sido efêmeras invenções da
humanidade, que sempre as vem mudando pelos tempos, logo... Né?
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista.
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