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domingo, 27 de março de 2022

PRECONCEITOS

Podemos estar livres de preconceitos? Não creio, ainda que tenhamos horror a nos identificar como preconceituosos. Afinal, como nos admitir com tais modos? Mas, antes de formular recusa ao argumento, pensemos com a ajuda do dicionário. Conforme o Houaiss, preconceito é “qualquer opinião ou sentimento concebido sem exame crítico; sentimento hostil, assumido em consequência da generalização apressada de uma experiência pessoal ou imposta pelo meio”.

O Aurélio reitera: “Preconceito: Conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos; ideia preconcebida. Julgamento ou opinião formada sem se levar em conta o fato que os conteste. Superstição, crendice”. Quer dizer: avalio um acontecimento com posições valorativas prévias, tendo meus valores como métrica. No correr da História pessoas mataram e morreram por crenças, religiosas, sobretudo, sem controvertê-las.


Como está visto, então, se formamos sentimento ou opinião sobre algo sem o devido exame crítico, sentiremos ou opinaremos com preconceito. Exato? E se uniformizamos nossos sentimentos e opiniões, se os recebemos acriticamente do meio social em que vivemos, estaremos, igualmente, sendo preconceituosos, não é verdade? E mais: se, sem análise percuciente de posição, sentirmos e opinarmos com hostilidade, já estaremos machucando pessoas, de acordo?


O mais danoso do preconceito, contudo, não está no intolerante que ostenta com violência suas concepções ou insulta quem pensa diversamente. Quando a atitude preconceituosa é assumida pelo agente, posso identificá-la, desprezá-la ou respondê-la. O que tenho por difícil de combater é o jeito não hostil de formar, divulgar, perpetuar preconceitos. Os aparelhos ideológicos de formatação e reprodução de preconceitos são a forma sutil, sorrateira e não percebida desse mal.


Louis Althusser é o formulador da concepção de aparelhos ideológicos como meio de produzir e reproduzir modos de pensar, ou seja, de perpetuar concepções previamente estabelecidas sobre o mundo. Althusser explica que o Estado detém meios repressivos para manter determinado status quo, mas que igualmente instituições da sociedade civil cumprem esse papel na manutenção de um determinado estado de coisas, incluindo os valores que fundamentam as nossas opiniões.


Essas instituições de “fazer cabeças” são o aparelho religioso, o escolar, o familiar, o jurídico, o político, o cultural, o de informação. No correr da vida, somos expostos a esses sistemas, que nos selecionam, premiando-nos por comportamento adequado, excluindo-nos se não seguimos a maioria. E nós nem suspeitamos disso, empenhando-nos voluntariamente a reproduzir um sistema de produção de preconceitos que nos acabam parecendo, e até sendo, tão indispensáveis.


Estamos, pois, todos nós, submetidos a uma máquina ideológica de uniformizar. Essa máquina dominadora opera formando uma unidade hegemônica que nos alcança generalizadamente; é difícil pensar criticamente sobre ela ou sobre seus efeitos, exatamente porque seus efeitos somos nós e o que nós pensamos. Seja, nós pensamos sobre o sistema social em que estamos inseridos a partir da formatação recebida do sistema social em que estamos inseridos.


Que fazer? Não há receita de salvação contra o sistema. Eu, pelo menos, não sei formulá-la. Todavia há coisas já sabidas que nos podem ser úteis. Dois pensadores iluministas colaboram. Diderot: “A ignorância não fica tão distante da verdade quanto o preconceito”; Rousseau: “Prefiro mais ser um homem de paradoxos do que um homem de preconceitos”. O ignorante e o paradoxal estariam, pois, melhormente posicionados contra “verdades” que o “médio” esclarecido?


Essa é a questão: o pensamento “senso comum” lavrado nas instituições ideológicas listadas por Althusser; em regra, são uma ampla coletânea de explicações simplificadoras. Para Diderot o ignorante não sabe, já o “senso comum” sabe preconceitos, e preconceitos não são facilmente removíveis. Diderot não propõe que nos deseduquemos, está claro, mas que discutamos as origens de nossas crenças, que suspeitemos de nossos valores (Genealogia da Moral, Nietzsche).
 

Rousseau não nos almeja desbussolados, apenas sem tantas certezas: que não fixemos compromisso com o que pensamos; que desconfiemos, que troquemos nosso pensar, se não conseguirmos fundamentá-lo racionalmente. Preconceito é, mesmo, uma soberba e uma falta de posição (auto)crítica. Não sejamos, pois, hostis para com as variadas concepções de mundo. Ideias têm sido efêmeras invenções da humanidade, que sempre as vem mudando pelos tempos, logo... Né?

 

Léo Rosa de Andrade

Doutor em Direito pela UFSC.

Psicanalista e Jornalista.


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