Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), a saúde
é “o estado de completo bem estar físico, mental e social, e não a simples
ausência de doença ou enfermidade” e nossa Constituição Federal dispõe, no
artigo 196, que a “saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença
e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação”.
Essas definições de saúde são, na verdade, objetivos
amplos a serem perseguidos, enquanto a manutenção e recuperação (ou não) da
saúde pessoal é uma consequência da assistência à qual todos têm direito. Para
os economistas existe uma “economia da saúde”, um mercado composto dos bens
materiais (hospitais, unidades de saúde, máquinas, equipamentos, aparelhos,
medicamentos etc.) e dos serviços prestados por médicos e os demais
profissionais da área da saúde.
Um dos principais desafios enfrentados pelo SUS,
cuja lei completa 30 anos em setembro próximo, é o de ser único e universal. Um
sistema público nacional e único de saúde é chamado de universalismo, isto é,
um serviço público pago pelo orçamento fiscal, à disposição de toda a
população. Embora sujeito aos males inerentes às estruturais governamentais,
como ineficiência e corrupção, um sistema público é conceitualmente meritório,
humanitário e defendido por muitos, inclusive vários economistas liberais, sob
certos argumentos.
O primeiro argumento é o do interesse
público, defensável sempre que seja necessária uma superestrutura pública capaz
de prover segurança e proteção contra ameaças e fontes de sofrimento que
superam a capacidade individual de solução, como agressões externas,
catástrofes naturais, pandemias, colapsos de abastecimento etc. Nesses casos, a
sociedade consente em abrir mão de uma parcela de sua liberdade para
submeter-se a um poder instituído destinado a atender às necessidades
decorrentes do flagelo coletivo.
O segundo argumento é a repercussão
coletiva. Neste caso específico, é a existência dos elementos que tornam o
capital humano eficiente, produtivo e capaz de aumentar o produto/hora de
trabalho ao ponto de construir uma nação economicamente rica, socialmente
desenvolvida, sem pobreza e sem miséria. Os dois principais elementos já identificados
pelos estudos econômicos nos últimos 300 anos, com expressiva repercussão
coletiva, são a educação e o padrão de saúde da população.
Então, temos aqui considerações econômicas a favor
da implantação de um sistema nacional de saúde capaz de manter bom padrão de
saúde para todos, além das considerações humanitárias e as vinculadas à
solidariedade humana. Quando o interesse econômico casa com o amor ao próximo,
temos o casamento perfeito. Ou seja, um sistema de saúde pública de qualidade
tem a capacidade de atender ao interesse econômico e, simultaneamente, cumprir
o imperativo de solidariedade social e amor ao próximo.
O terceiro argumento a favor de um
sistema universal de saúde vem das falhas de mercado. Em todo mercado há pelo
menos quatro atores: o produtor, o consumidor, o produto e o preço. Nas
economias livres, é no embate de interesses antagônicos entre comprador e
vendedor (quando há muitos produtores e muitos consumidores, de forma a não
haver dependência um do outro), que aparecem as vantagens da livre concorrência
e as transações satisfazem os dois lados.
Sem esses atributos, o mercado apresenta falhas que
prejudicam a competição e a soberania do consumidor, resultando em transações
menos eficientes e distorções na formação de preços. Nesses casos,
justificam-se intervenções governamentais e alguma regulação. O setor da saúde
é um mercado que apresenta certas falhas, no sentido econômico da palavra,
algumas das quais estão a seguir.
- Necessidade
não mercantil. A assistência médica, uma cirurgia, um procedimento
terapêutico e os serviços médicos de modo geral não são opcionais,
porquanto o consumidor não é totalmente autônomo. Em geral, a necessidade
de atendimento é uma imposição das doenças, acidentes e anomalias físicas
ou mentais, em grande parte fora do controle individual. Eu tenho escolha
entre comprar ou não comprar um sapato ou um carro. Mas, se sofro um
acidente ou problema qualquer em meu organismo, não tenho escolha:
necessito de um atendimento médico ou pereço.
- Os
Produtos não são comparáveis. Se quero comprar um camisa, tenho centenas
de opções, modelos, preços e fornecedores. Minha liberdade de escolha é
ampla. Mas se sofro um infarto e somente uma ponte de safena me salva, não
tenho tempo nem opção de modelos. Minha liberdade de escolha é quase
nenhuma, nem deve haver uma ponte de safena para pobre e outra para rico.
Como produto, as cirurgias são padronizadas (ou pelo menos deveriam ser).
- Reduzida autonomia do consumidor. Para comprar um carro, pesquiso, visito lojas, pergunto, avalio e decido com autonomia. Agora imagine que você esteja em viagem e sofre um acidente. Alguém chama uma ambulância e você é entregue ao primeiro hospital que há, nas mãos do médico de plantão. Não há escolha. Essa é uma das razões pelas quais os cursos de Medicina devem ser regulados e fiscalizados com rigor. Você somente descobre quem o atendeu quando sair da anestesia pós-operatória (se sair).
- Concorrência imperfeita ou inexistente. O Brasil tem 5.570 municípios, somente 1.427 têm acima de 25 mil habitantes. Portanto, são 4.143 cidades com menos de 25 mil, sendo que 1.200 têm menos de 5.000 habitantes. Isto é, na maior parte do país, as opções de escolha são poucas ou quase nulas. O consumidor (chamado apropriadamente de paciente) não tem saída. Não se pode julgar o mercado da saúde de toda uma nação pela lógica das cidades grande.
- Consumo do serviço simultâneo à produção. O serviço de saúde é produzido no exato momento em que é consumido. Não há cirurgias de safena em estoque para você comprar quando seu coração falhar. Não é você que decide quando seu coração vai entrar em colapso. Claro, seus hábitos podem indicar para onde você está indo com sua saúde, como também há cirurgias e procedimentos de emergência, urgência e os meramente eletivos.
- Formação
de preço deficiente. Pelas características citadas, e outras mais, a
formação de preço nos serviços de saúde é deficiente. Não é um mercado
competitivo nos moldes dos bens e serviços de consumo opcional. Nem nos
planos de saúde a formação de preço é simples. Há o médico, o paciente, o
serviço e o preço. Só há um problema: o pagador não é o cliente
(paciente), é a operadora do plano. Então, surge aqui um quinto ator nesse
mercado, o que dispensa o embate entre cliente e fornecedor, permite
abusos e desperdícios, obrigando as operadoras a terem enormes equipes de
auditoria.
O Brasil está longe de ter somente o SUS como
sistema único e universal e poder dispensar outras soluções de mercado, como os
planos individuais ou empresariais. Mas algo tem que mudar. O coronavírus teve
a virtude de mostrar as virtudes e os vícios do sistema.
José Pio Martins - economista
e reitor da Universidade Positivo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário