A CULPA É DOS SEUS PAIS
Nas últimas semanas, uma enxurrada de notícias
assolou a mídia com um tema para lá de pitoresco: cirurgias plásticas. É médico
sem registro realizando procedimentos clandestinos para inflar bumbum, silicone
industrial aplicado por massoterapeuta de classe média, fora as famosas selfies
tiradas durante intervenção estética em um famoso hospital argentino.
Os números são alarmantes. De acordo com estatísticas
da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, no Brasil, cerca de 90 mil
cirurgias plásticas são realizadas anualmente por parte da população jovem, com
idade entre 18 e 30 anos. Em 2017, na comparação com 2016, a busca pelo corpo
perfeito gerou um acréscimo de 9% no número de procedimentos estéticos.
Aonde iremos parar? Em 1919, a psicanalista
austríaca Melanie Klein já alertava a sociedade para os efeitos nefastos do
ódio patológico: “um bebê, quando privado de seu bel-prazer, passa a atacar o seio
da mãe utilizando-se de mordidas sádicas, repletas de agressividade. Caso não
seja capaz de superar a culpa proveniente deste movimento, padecerá em doença”.
Alegações psicológicas à parte, o que a
psicanalista queria dizer é que só existe um caminho para onde a raiva se
destina: aos nossos pais. Se estamos irritados, por que não injetar alguma
substância nociva em uma paciente qualquer, em uma tentativa psicóide de
destruir aquela mãe lá de trás que me preterira frente um irmão mais novo?
Ou, ainda, em outros casos, por que não explodir
esta exasperação mal resolvida dentro de si mesmos? Chateamo-nos com o mundo?
Procuramos um golpista qualquer para que ele destrua a imagem daqueles
genitores que existem dentro de nós e que não suportamos mais carregar. Afinal,
tudo aquilo que está aos pedaços machuca, sangra e clama pelo não-existir.
E o que dirá daqueles que se divertem com o
retalhamento alheio? Para os que são um pouco mais covardes, um sorriso para a
foto e tripas ao vento faz verter lágrimas de gozo em desvario como se
dissessem: “não consigo atentar contra a minha própria vida, nem contra a do
outro, mas posso me divertir com a ideia jocosa dos meus pais estilhaçados”.
Simples, não?
Suturas, anestesias e bisturis em mãos e muito
rancor no coração. Será que nos tornamos pessoas tão alienadas a ponto de não
percebermos que o outro não existe? E, se ainda vivemos nessa quimera
caleidoscópica projetada no espelho das nossas próprias desilusões, qual seria
a angulação ideal para que pudéssemos reconstruir este corpo quebrado?
Para os fãs do Botox, loucos por preencher os
personagens murchos em seu interior, por que não começar a completar o dia a
dia com palavras mais leves e repletas de gratidão? Quando estas ações de
equivalência metafórica começarem a ser realizadas, verão que, assim como uma
pele que ganha elasticidade e vida, o seu “eu” se tornará mais livre e
abundante.
E o que dirá dos adeptos do silicone? Para
atenuar o vazio, mil mililitros em cada nádega podem não ser suficientes. Em
vez disso, adicionar gotas de compreensão e compaixão pelos seus pais,
perdoando-lhes nas suas imperfeições e ausências, pode ser o retoque que
faltava para que vocês se transformem em pessoas inteiras, circulares e
equiformes por dentro.
Os que não perdem a oportunidade para “arrancar
fora” as partes indesejadas do próprio corpo, por que não tentar exprimir para
eles, por meio de palavras afetuosas, os motivos geradores de tanta tristeza e
insatisfação? Assim, cada parte das suas recordações mais profundas completará
um relicário de sentimentos firmes, sem deformações e flacidez existencial.
Já para os que preferem “chupar” as gorduras
indesejadas, compreenda que mamar além da conta, vez ou outra, e ganhar umas
dobrinhas, foi o motivo pelo qual vocês puderam se transformar nestes adultos
que são hoje: saudáveis, fortes e resilientes. Acalmem os seus excessos,
aprendam com eles, e nunca deixem de contemplar a imagem mais perfeita que os
seus pais compuseram: vocês mesmos.
Renan Cola - psicanalista da É Freud, viu?
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