Em 2019, o Brasil fez a Reforma da Previdência,
medida apontada como urgente, na época, porque muitos definiam o regime
previdenciário como uma bomba prestes a explodir. Passados cinco anos apenas,
constata-se que a reforma de 2019 foi parcial. Talvez o resultado tenha sido o
politicamente possível, porém ficou muito aquém das necessidades nacionais.
Agora uma nova reforma se impõe, de forma mais
ampla, incluindo os estados e municípios, além de observar o que determina o
estudo atuarial.
Não há como fugir do problema. Nem adiar a busca de
solução. Hoje, todos os tipos de previdência social no Brasil – Regime Geral da
Previdência Social, servidores da União, de estados e municípios – apresentam
déficits expressivos. Em 2023, esse rombo alcançou R$ 482 bilhões, um valor
preocupante porque equivale a 4,41% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional e a
13,4% das receitas tributárias dos três entes federativos (União, Estados e
Municípios). Esmiuçando: são R$ 312 bilhões de déficit do RGPS, mais R$ 110
bilhões do sistema de previdência dos servidores da União (civis e militares) e
ainda R$ 60 bilhões de rombo na previdência dos servidores dos estados e
municípios.
Merece destaque o fato de que, enquanto o déficit
do RGPS corresponde a cerca de R$ 9.400,00 per capita/ano, o dos servidores
civis da União chega a R$ 69.000,00 per capita/ano. Na liderança do rombo está
o déficit da previdência dos militares, que atinge R$ 150.000,00 per
capita/ano.
Embora o Regime Geral da Previdência tenha o maior
número de beneficiados, seu déficit per capita é menor por uma razão simples:
70% dos 33 milhões de aposentados e pensionistas recebem remuneração igual ao
piso salarial estabelecido pela legislação, ou seja, apenas 1
salário-mínimo/mês (R$ 1.412,00). Os outros 30% dos aposentados recebem, em
média, cerca de R$ 2.600,00/mês (1,85 salário-mínimo). Já o valor médio global
do RGPS, em 2023, foi de apenas R$ 1.771,28/mês (1,36 salário-mínimo). É fácil
constatar que para a maioria dos brasileiros não há aposentadorias generosas.
Entre as principais razões do gigantesco déficit da
Previdência Social está o fenômeno de criação da figura jurídica e empresarial
do MEI (Micro Empreendedor Individual), que entrou em vigor em 2009 para
formalizar e dar segurança jurídica a trabalhadores autônomos que não tinham
nenhum amparo legal nem contavam com assistência previdenciária. Na prática, o
objetivo era incentivar o empreendedorismo.
Ocorre que o Brasil é um dos campeões em produção
de leis, medidas provisórias, decretos, instruções normativas e muitos outros
atos jurídicos elaborados sem maiores cuidados e tecnicidade. Isso faz com que
existam sempre brechas jurídicas para burlar o seu fiel cumprimento, algo
antiético, porém legal. Foi o que aconteceu com o regime MEI. Segundo estudo
elaborado pela economista Bruna Alvarez, da Fundação Getúlio Vargas, 53% dos
trabalhadores que optaram pelo regime MEI até 2019 não atuavam como
empreendedores, mas sim eram empregados assalariados de outras empresas. Ou
seja, foram estimulados (ou forçados) a se transformar em microempreendedores
individuais, tudo como forma de o empregador escapar dos elevados encargos e
passivos trabalhistas. É o fenômeno conhecido como “pejotização” – a
transformação da pessoa física em pessoa jurídica -, que vem caracterizando as
relações trabalhistas no país.
Considerando-se a contribuição mensal de uma MEI,
de 5% do salário-mínimo), durante 13 meses (incluindo “13º salário”), tem-se a
contribuição anual de R$ 917,80 por ano (valores de 2024). Como no Brasil há
15,7 milhões de MEIs (dado de 2023), o recolhimento total por ano é de R$ 14,41
bilhões. Caso o MEI queira pagar a contribuição de INSS complementar, para
garantir os mesmos direitos dos demais contribuintes, desembolsará mais R$
155,32 por mês, ou R$ 2.019,00 por ano.
Já um trabalhador registrado pela CLT com salário
de 1 salário-mínimo, contribui hoje com 7,5% de R$ 105,90 por mês, ou R$
1.376,70 anuais. Consideremos a contribuição do empregador variável, mais o
mínimo de 20% da remuneração do empregado, de R$ 3.671,20 por ano, temos o
total de R$ 5.047,90. Subtraindo-se desse valor o montante de contribuição do
MEI, resulta R$ 4.130,10. Esta é a perda de arrecadação da Previdência por cada
pessoa que migrou do emprego formal para uma MEI.
Como 53% das 15,70 milhões de MEIs existentes em
2023 (ou seja, 8,32 milhões delas) nada têm a ver com empreendedorismo,
utilizando esse regime como mero expediente para fugir da elevada carga tributária
incidente sobre cada empregado de uma empresa privada, a perda da arrecadação
do RGPS pode ser estimada em R$ 34,36 bilhões no ano. Somando-se aos R$ 16,34
bilhões referentes ao vínculo do salário-mínimo, o impacto negativo na
arrecadação do FGTS chega a R$ 50,70 bilhões.
Há ainda outros aspectos que comprometem o sistema.
Um deles está no critério da idade para concessão de aposentadoria. Os homens –
cuja expectativa de vida é de 72 anos -, podem se aposentar aos 65 anos de
idade. Já as mulheres, que possuem expectativa de vida maior (79 anos), podem
requerer a aposentadoria com 62 anos. Ou seja, embora as mulheres tenham maior
expectativa de vida (7 anos a mais que os indivíduos do sexo masculino), podem
se aposentar com 3 anos a menos que os homens. A equiparação de idades para a
aposentadoria seria, portanto, o caminho correto. O problema é que seu custo
político é alto demais, prejudicando o avanço dessa questão.
Também é preciso levar em conta fatores como o
envelhecimento da população e a queda na taxa de crescimento populacional, de
1,7% para 0,5% ao ano.
Não se pode perder de vista, ainda, o excesso de
gastos da gestão e administração do Instituto Nacional de Seguridade Social
(INSS) e de outros órgãos vinculados ao RGPS, seja com as cúpulas (Brasília e
estados), seja com privilégios, desperdícios ou fraudes frequentes e de grande
monta. Há, sem dúvida, espaço para cortes expressivos nessas despesas.
Igualmente, é necessária especial atenção com as
desonerações concedidas para alguns setores econômicos, estimadas pelo governo
entre R$ 15 e R$ 20 bilhões/ano. Cabe um exame detalhado para avaliação da
procedência desses benefícios e uma avaliação criteriosa sobre a possibilidade
de redução ou exclusão das desonerações.
Também merecem análise os gastos com os Benefícios
de Prestação Continuada (BCP), que hoje englobam 5,8 milhões de pessoas, com
remuneração igual ao piso salarial de um salário-mínimo/mês (R$ 1.412,00). Esse
benefício é assegurado pela Lei Orgânica de Assistência Social (L.O.A.S) que,
por sua vez, tem garantia constitucional. O programa é direcionado aos idosos
com mais de 65 anos, deficientes físicos e aos vulneráveis. A elegibilidade dos
beneficiários está atrelada ao cumprimento de vários critérios, como por
exemplo, a idade, condição da deficiência, renda familiar e avaliação médica e
social. Não é condição para receber o benefício qualquer contribuição prévia ao
INSS e, por esta razão, a principal fonte de recursos é o orçamento da União.
O custo do programa é de R$ 106,47 bilhões por ano
(considerando-se 13 parcelas mensais), o equivalente a 0,93% a 0,96% do PIB. Já
o efeito do vínculo do benefício ao salário-mínimo representa R$ 2,78 bilhões
por ano.
A soma do custo dos vínculos do salário-mínimo às
aposentadorias, pensões e ao BPC; das MEIs em número extraordinário e das
desonerações de alguns setores econômicos chega a valores entre R$ 68,48 e R$
73,48 bilhões. É um número enorme que fica ainda maior se forem considerados os
valores das fraudes previdenciárias, programa BPC e os custos da gestão do
RGPS, das aposentadorias diferentes entre homens e mulheres, e da aposentadoria
rural, que também reclama auditagem profunda.
O problema do déficit da Previdência – envolvendo
civis, militares e BPC – é de extrema gravidade. A questão é complexa,
multifacetada e extremamente sensível, vez que as mudanças que vierem a ser
feitas certamente atingirão, mais uma vez, os menos favorecidos: idosos,
pessoas de baixa renda – que representam mais de 70% dos aposentados e
pensionistas -, mulheres e cidadãos com deficiência.
Como governar não é retirar direitos e conquistas
da grande maioria sofrida da população a fim de assegurar (e se possível,
ampliar) a enorme gama de privilégios de uma casta da sociedade nacional - os
donos do poder -, a gravidade do problema previdenciário obriga o exame em
conjunto dos gastos com funcionalismo público dos três entes federativos porque
o Brasil gasta, com isso, 12,8% do PIB, muito mais do que a média (9,8% do PIB)
dos 37 países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico
(OCDE). Esses 3% a mais correspondem a nada menos que R$ 327 bilhões/ano.
É necessário levar em conta, ainda, que estudos
oficiais do governo e de outras entidades, com base no cálculo atuarial,
estimam o déficit previdenciário em mais de R$ 6 trilhões, o equivalente a 57%
do PIB. Um valor astronômico, que supera 67% da dívida pública, hoje entre R$
8,7 e R$ 9,0 trilhões.
A bomba, portanto, não foi desarmada com a reforma
de 2019. Continua ameaçadora e prestes a causar maiores estragos entre os
aposentados e pensionistas porque a cogitada desvinculação do salário-mínimo à
aposentadoria vai retirar mensalmente R$ 36,71 desses beneficiados, valor que
seguramente lhes fará muita falta nessa fase da vida.
Qualquer mudança a ser feita exigirá muita
tecnicidade, transparência absoluta e, acima de tudo, sensibilidade para
enxergar que é chegada a hora da redução de privilégios, em busca do equilíbrio
para se evitar a falência do sistema previdenciário, que acontecerá mais cedo
ou mais tarde caso não sejam adotadas as providências necessárias e inadiáveis.
Para isso é necessário coragem e o aprendizado de
uma lição dada pelo professor, economista e ex-ministro Mário Henrique Simonsen
(1935-1997), para quem a diferença entre o fracasso e o sucesso de um gestor
público está na simples troca de uma vogal: prever (estudos e planejamento), em
vez de prover (UTI e bombeiro apagando incêndio).
Samuel Hanan - engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br