Opinião
Não é fácil soltar as mãos de pessoas queridas,
principalmente quando falamos daqueles que seguram as nossas desde que chegamos
a este mundo. Encarar a morte é sempre um desafio para a mente, o espírito e
até mesmo o corpo. Ânsia, dores de cabeça, nas costas, nos braços, choro
descontrolado ou apatia - todos são sintomas de que o que está chegando ao fim
é, mais que a história de outra pessoa, uma parte da nossa própria história que
só aquele coração carregava consigo. Dizer adeus, no entanto, é trecho
essencial do caminho da vida humana.
O que se faz com essa despedida depende de inúmeros
fatores, alguns mais controláveis e outros menos. Mas, no caso de quem adoece
um pouco mais a cada dia, falar sobre o fim e discutir as melhores abordagens
para o paciente e os familiares é uma maneira de continuar apertando aquela mão
entre os dedos enquanto for possível. Oficialmente, o que hoje se chama de
cuidados paliativos surgiu no Reino Unido, na década de 1960. Mais de 60 anos
depois, ainda falta conhecimento, até mesmo aos profissionais de saúde, sobre
de que forma esses cuidados podem ser aplicados em cada caso.
Algumas decisões são mais dramáticas e, por isso
mesmo, mais conhecidas. Quando manter os aparelhos ligados? Quando optar por
medidas extremas, que podem prolongar a vida, mas causarão danos à qualidade de
vida? Quando seguir com uma cirurgia que tem risco de morte? Esse tipo de
questionamento, que está no limite das decisões impossíveis, também faz parte
do paliativismo, mas este não se resume ao limite. Considerar que alguém está
em cuidados paliativos tampouco significa que nada mais deve ser feito por essa
pessoa, mas, ao contrário, significa que tudo o que for feito por ela deve
levar em consideração, em primeiro lugar, seu bem-estar físico, emocional e,
por que não, espiritual.
Não se trata de nada fazer, mas de permitir que
aquele ser humano tenha qualidade de vida e conforto durante aquele momento da
existência neste mundo. Enquanto, no começo do século passado, nós vivíamos
apenas até perto dos 40 ou 50 anos, os avanços na medicina, como a descoberta
de muitas vacinas e medicamentos, e nas noções de higiene básica, como melhoria
no saneamento e acesso à água potável, possibilitaram que essa expectativa de
vida subisse para perto dos 70 ou 80 anos, dependendo da região em que se vive.
No entanto, esse aumento não vem sem ônus. Viver mais também significa
ter mais chances de receber, em algum ponto, o diagnóstico de uma doença grave.
É preciso, então, entender que a finitude é um
destino inescapável para todos nós, nossos pais, filhos, amigos, irmãos,
companheiros. Daí a urgência de falar sobre ela. Ao deparar-se com uma doença
grave, conhecer a história de vida daquela pessoa, suas crenças e suas
diretivas antecipadas - por exemplo, quando deixou claro que não queria ficar
em uma cama - é fundamental. Outro ponto importante é a cultura familiar, o
conjunto de características que cerca cada família e também a compreensão que
essa família tem sobre a doença do paciente. Por fim, também importa muito
conversar com paciente, família e equipe multidisciplinar prezando sempre pela
ortotanásia, que é a morte no seu tempo certo/natural, sem utilizar meios que
encurtem o tempo de vida e também sem prolongá-la artificialmente com
tratamentos que causam mais desconforto.
Embora a medicina não seja capaz de curar todas as
doenças, ela é capaz de oferecer cuidados que trazem alívio para o sofrimento
físico até os últimos segundos de vida. Ironicamente, quando abrimos mão de
tentar prolongar a vida a qualquer custo, muitas vezes estamos oferecendo ao
paciente a possibilidade de viver mais e melhor. De acordo com a Worldwide Hospice
Palliative Care Alliance (WHPCA), 20 milhões de pessoas morrem com estresse e
dores desnecessários todos os anos. E, ironicamente, há estudos que mostram que
pessoas que não têm acesso a cuidados paliativos desde o diagnóstico acabam
vivendo menos tempo do que poderiam se tivessem tido esse acesso.
Precisamos parar de encarar os cuidados paliativos como um luxo ou mesmo como uma forma de deixar que nossos entes queridos morram sem fazer nada por eles. Ao contrário, abraçar o paliativismo é fazer tudo. Tudo o que os milênios de avanços médicos e tecnológicos podem oferecer para garantir uma vida plena e bem vivida até o fim. E, muitas vezes, fazer tudo é permitir que essa pessoa descanse, quando chega a hora, respeitando sua história e suas batalhas, suas dores e seu sofrimento, seja físico ou emocional, respeitando o amor que temos por ela e que ela tem por nós. Adotar os cuidados paliativos é deixar ir sem nunca, nunca soltar aquela mão.
Maria Fernanda Carvalho - graduada em Medicina com residência em Medicina Interna. Atualmente é coordenadora médica do Hospital São Marcelino Champagnat.
Nenhum comentário:
Postar um comentário