Opinião
O hábito de consumir bebida alcoólica é muito
antigo! Segundo artigo do National Geographic, foram encontrados resíduos de
vinho de arroz num jarro chinês de 9.000 anos. E tão antigo quanto o seu
consumo é a busca por um equilíbrio. Já alertava o poeta grego Eubulus, no
século IV, que a primeira taça de vinho é saúde, a segunda prazer, a terceira
sono e, quando esta taça é servida, as pessoas sensatas vão para casa, pois a
quarta taça pertence à violência. É fato que o uso do álcool em excesso
se relaciona com uma série de problemas sociais, como acidentes
automobilísticos, dependência química, desemprego e violência – principalmente
contra a mulher. Segundo dados da Organização Pan-Americana da Saúde, o uso do
álcool é um fator de risco associado à violência sexual e violência doméstica.
Inúmeros dados e pesquisas comprovam isso. Por exemplo, um artigo publicado na
Revista Médica de Minas Gerais, afirma que 50% dos casos de violência sexual
estão relacionados ao consumo de álcool pelo agressor, pela vítima ou por
ambos. No caso do agressor, o álcool pode atuar levando a pensamentos
violentos, diminuindo a inibição e justificando o comportamento para homens
que, na verdade, já são violentos. Inclusive, esse assunto veio à tona
recentemente porque o jogador Daniel Alves usou, como forma de atenuante, o
fato de estar sob o efeito de bebida alcoólica para cometer o crime de estupro
na Espanha. Uma dose de bebida alcoólica é definida como, aproximadamente, 14g
de álcool, quantidade presente em uma latinha de cerveja; garrafa long neck;
taça pequena de vinho; garrafa de ‘ice’; ou uma dose de cachaça (ou
outros destilados). Para fins de comparação com levantamentos internacionais
(National Survey on Drug Use and Health),m “binge drinking”, como o beber
episódico pesado, definido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), aponta para
"uso de seis ou mais doses de álcool em uma única ocasião ao menos uma vez
por mês" (WHO, 2014). Trata-se de um padrão de consumo, que provoca
intoxicação. É associado à violência, acidentes, comportamento sexual de risco,
doenças crônicas e dependência de álcool, entre outros problemas agudos e
crônicos. Por isso, é considerado um problema de saúde pública, passível de
prevenção, por diferentes organizações, como a OMS e o Center for Disease Control
and Prevention (CDC). Para se ter ideia, um estudo da FIOCRUZ (2022) apontou
que prevalência do consumo em binge é de 16,5%, correspondendo a
aproximadamente 25 milhões de habitantes. É importante ressaltar que a
prevalência de binge drinking foi estimada para a população geral. Caso se
considere, como denominador, apenas os indivíduos que fizeram uso de álcool nos
últimos 12 meses, a prevalência de binge drinking seria de 38,4. Mediante
tantos malefícios causados pelo consumo excessivo de álcool, devemos nos
perguntar se “essa conta” deve ser paga apenas pelo consumidor (que paga pelos
impostos adicionados ao preço de bebidas alcóolicas) e assume responsabilidade
pelos atos; pela sociedade, que arca com os danos atrelados ao consumo
exagerado de álcool e consequente aumento dos níveis de violência, custos
elevados no setor de saúde pública, acidentes de trânsito, doenças provocadas
pelo consumo de álcool (cirrose hepática, câncer no fígado),dentre outros. E
quanto às empresas de bebidas alcóolicas? Será que elas têm corresponsabilidade
nessa "conta"? Sabe-se que esse setor gasta bilhões em propaganda,
justamente para “estimular” o consumo, e tal objetivo é alcançado com sucesso.
A força do marketing pode ser comprovada analisando outra indústria: a do
tabaco. Após a proibição de propaganda de cigarros no ano 2000, o número de
fumantes caiu em mais de 30% nos anos seguintes. Ou seja, chega a ser um
contrassenso gastar bilhões com propaganda incentivando o consumo e colocar no
final das peças publicitárias, em letras miúdas, um “consuma com moderação”,
“se beber, não dirija’’.
Quando o assunto é ESG, todas as empresas
Materialidade, ou seja, todas geram impactos tanto positivos, quanto negativos.
E isso vale para todas as operações de um negócio. No caso das indústrias de
bebidas alcóolicas, os problemas ocasionados pelo consumo excessivo e
estimulado pelas indústrias de bebidas alcóolicas consistem em Materialidade
das empresas. E por este motivo, as empresas deste setor deveriam se ocupar de
estratégias, programas e projetos focados diretamente aos efeitos dos que
têmparcela de participação. Não se trata de "cancelar" os momentos de
alegria em que as bebidas estão inseridas, mas de assumir uma parcela de
corresponsabilidade nos efeitos devastadores do consumo elevado. Dessa
maneira, quando empresas de bebidas alcóolicas traçam estratégias para expansão
nas vendas a partir de estímulo e elevação de consumo ou quando se dizem
alinhadas ao ESG, deverão também assumir compromissos concretos de prevenção,
mitigação e compensação de danos. Os quais já sabemos que são incalculáveis
para muitas vítimas de acidentes fatais, vítimas da violência doméstica,
vítimas de estupros, bem como pessoas que desenvolveram vício para o álcool. As
empresas sempre alegam que fazem sua parte e que têm projetos sociais voltados
para diferentes públicos. Ocorre que os valores são insignificantes frente às
graves consequências causadas por decisões estratégicas relacionadas à expansão
e intensificação dos mercados. Só para dar uma ideia, segundo dados da ISE3
(Índice de Sustentabilidade Empresarial da Bolsa de Valores B3) no exercício de
2021-2022, um grande grupo cervejeiro informou que destinou menos de 0,5% de
sua receita operacional bruta em Investimento Social Privado. Pode-se dizer que
é dinheiro de “troco”, se comparados aos gastos com propaganda e ao faturamento
de empresas com a comercialização desmedida de bebidas alcóolicas. Pesquisas
confirmam ainda que o consumo de bebidas alcóolicas é a porta de entrada para
as demais drogas. Enfim, passou da hora do setor de bebidas alcoólicas
realmente fazer um “mea culpa” e efetivamente realizar algo a respeito. Não
basta só empurrar a responsabilidade para o consumidor e fazer marketing em
torno de projetos sociais assistencialistas, que passam longe dos principais
problemas relacionados ao consumo excessivo de bebidas. Será preciso prevenir,
mitigar e compensar, considerando a proporcionalidade de responsabilidades. Não
será tão simples como rachar a conta no bar. Trata-se de um exercício que a
sociedade, governos e empresas deverão fazer de maneira bastante sóbria.
Shirlei Camargo - doutora em Administração pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e atua como Brand Manager da Plataforma Nobis.
Claudia Coser - doutora e mestre em Administração na área de Estratégia e Organizações e fundadora da Plataforma Nobis.
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