Em maio de 2020, quando o mundo ainda nem suspeitava de que a pandemia atravessaria a barreira do Reveillon, a Academia Americana de Pediatria publicou orientações para a reabertura de escolas, com enfoque num grupo especial: as crianças com algum tipo de deficiência. O documento apontava para o fato de que alunos com deficiência podem ter mais dificuldade com os aspectos sociais e emocionais da transição para fora do ambiente escolar e na volta a ele. E recomendava que as escolas desenvolvessem um plano que garantisse um programa de educação individual, ajustando as medidas compensatórias a cada aluno, levando em conta as dificuldades de aprendizado, deficiências e outras particularidades.
A lacuna de aprendizado deixada pela pandemia já é
um desafio em si, mesmo considerando crianças e jovens sem deficiência. As
aulas on-line e as ferramentas implementadas às pressas pelas escolas não foram
suficientes para suprir um distanciamento tão prolongado – que no Brasil durou
quase um ano letivo inteiro. No caso das crianças e dos jovens com deficiência,
a falta de entrosamento com os colegas é ainda maior, sem contar a perda do
vínculo com a escola, o desinteresse em participar das atividades, o
desconhecimento dos conteúdos trabalhados e a dificuldade adicional dos pais –
que não possuem preparo técnico – de orientarem seus filhos em casa. O
resultado é que a inclusão, que já não ocorria como deveria na educação
brasileira, parece ter sido negligenciada.
A pá de cal veio com o Decreto nº 10.502,
instituindo a Política Nacional de Educação Especial, numa tentativa do Governo
Federal de desfazer avanços que ainda estão em construção, mas que significam
um marco para a inclusão de pessoas com deficiência em escolas. Sob protestos e
vaias, o texto propunha a recriação de escolas e/ou classes especiais para os
alunos com deficiência, forçando um claro movimento de rejeição a essa
população. Atuando mais uma vez como o salvador da pátria dos direitos
constitucionais, veio o Supremo Tribunal Federal (STF) a coibir abusos e
revogar o decreto.
A decisão, que inicialmente veio como uma liminar
do ministro Dias Tóffoli e que depois foi confirmada por votação do plenário
por 9 a 2, soou como uma reparação às famílias de crianças com deficiência, e
como um sinal de que nem tudo está perdido em 2020, ano que ficou marcado como
aquele que escancarou as desigualdades.
A esperança, agora, é a vacina. Não apenas no
Brasil, mas no mundo. Por aqui, as escolas não reabriram nem mesmo com o recuo
dos números de casos e mortes, até porque não tivemos a chance de viver o fim
de uma primeira onda de coronavírus. Experimentamos a estabilidade, seguida de
um aumento de casos preocupante, que reforça o coro de que não iniciaremos o
novo ano letivo com aulas presenciais. No máximo, teremos um modelo híbrido.
Nesse contexto, há que se privilegiar posturas
inclusivas que garantam que todas as crianças, sem exceção, tenham o direito de
participar das atividades propostas pela escola, sejam presenciais ou
remotas. Isso inclui uma série de iniciativas que precisam ser
pensadas, pelo poder público e pelos entes privados, num plano nacional.
As aulas em vídeo, por exemplo, devem contemplar
recursos de acessibilidade como áudiodescrição, tradução em Libras e closed
caption. O acesso à Internet precisa ser garantido, com prioridade, para
aquelas famílias que, além de não possuírem recursos, contam com crianças
especiais em idade escolar. Os professores, igualmente afetados pela
pandemia, precisam ter acesso a treinamentos especializados que favoreçam a
troca de experiências e criação de estratégias para enfrentamento das
dificuldades do aprendizado de crianças especiais. Além disso, os pais precisam
ser apoiados, para que não se sintam solitários nessa guerra.
De acordo com o último censo do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quase 46 milhões de brasileiros
possuem alguma deficiência mental ou física. Desse universo, não há um número
preciso sobre a porcentagem de pessoas que estão em idade escolar. Mas os
últimos dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep), relativos a 2018, dão conta de que 1,2
milhão de alunos com deficiência estavam matriculados em escolas no país –
informação que certamente deixa de lado crianças e jovens que não possuem
acesso algum a qualquer tipo de formação educacional.
A despeito da subnotificação, uma população na casa
do milhão, formada por crianças e jovens que compõem o futuro dessa nação, não
pode ser ignorada. Nem mesmo numa situação de pandemia. Coronavírus não é
desculpa para a exclusão.
Diana Serpe - advogada, atua nas áreas de Direito de Saúde e Direito da Educação. Criadora do Autismo e Direito, com perfis nas redes sociais (Instagram e Facebook) que visam informar o público sobre as questões legais referentes à pessoa autista e seus familiares.
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