Quando eu tinha 4 anos, passei pelo pior acidente que uma criança poderia passar: sofri queimaduras por todo o corpo, perdi dedos, uma mão, mas também do fogo eu renasci como uma Fênix - ou seja, superei aquele episódio que deixou marcas por todo o meu corpo. No entanto, o que para muitos é apenas uma história triste e de superação, para mim é o início de uma trajetória de sucesso, pois não se resume a "Ju queimada", abandonada no Hospital de Queimaduras pela mãe biológica, adotada por uma família bondosa e cristã que me deu todo amor e carinho.
Durante minha infância e adolescência sofri bullying, mas tive o suporte
familiar para que eu não me colocasse em um papel inferior, de vítima. Tornei-me
adulta, realizei o sonho de ser estilista (de noivas), sou mãe de 3 crianças
maravilhosas, sou influenciadora e, ainda no meio desta pandemia, virei
tiktoker... Minha história é muito louca mesmo. Mas o resumo é assim: me
queimei, fui adotada, cresci e estou aqui para contar uma parte dessa história,
mas precisamente um episódio de quando tinha 15 anos.
Cresci em uma família que me apoiou muito e me fez acreditar que, mesmo
possuindo uma deficiência física, tudo era possível. Aprendi a desenhar, sempre
gostei de moda; por isso, gostava de me vestir de forma diferente e estilosa.
Era popular e tinha muitos amigos, mas mesmo assim passei por maus bocados.
O bullying era diário e constante na minha vida, seja daquela criança que
adorava me chamar de "pata de cachorro", "queimadinha",
"monstro radiotivo" entre outras coisas, ou da tia da padaria que
todo dia queria me contar da prima dela que caiu no tacho de água quente e
queimou a cara e ficou toda deformada, igual a mim como ela dizia com um
sorriso no rosto.
Não foi uma infância fácil. O tempo todo as pessoas faziam questão de me
lembrar que eu não era igual a elas. O tempo todo me faziam sentir pena de mim
mesma ou, pelo menos, era isso que elas queriam que eu acreditasse.
Depois da primeira infância e de tentar lidar com tudo isso, veio uma fase mais
complicada: adolescência. Hormônios à flor da pele. Todas querendo se sentir
lindas, ter seus primeiros namoradinhos e eu, claro, queria a mesma coisa. Mas
sempre tinha uma voz na minha cabeça: mas será que algum cara vai me querer
assim? Será que vai me achar bonita? Me desejar?
Por muito tempo me senti assim até eu dar meu primeiro beijo. Namorei meu
primeiro amor e melhor amigo do colégio por um tempo, até um dia ele falar algo
que me marcou e me mudou para sempre: "Você, além de linda, é como se
fosse uma bruxa, sabia? Você tem algo que enfeitiça, sei lá... Deve ser esses
olhos ou essa boca, para mim você é perfeita". Terminamos quando ele mudou
de colégio.
Foi um momento de descoberta importante, onde me vi confiante e sexy, e comecei
a demonstrar todos os dias isso. Entendi que, antes de ver minhas mãos, os
garotos teriam que olhar nos meus olhos, me conhecer e usei isso a meu favor,
me tornei popular e desejada por muitos garotos. Parece um conto de adolescente
feliz e empoderada, né?
Até que um dia tudo mudou. Em uma dessas baladas, um cara mais velho que eu
(ele devia ter uns 18 anos) me chamou no canto falando que já me via há uns
três sábados e me achava muito linda, estilosa, tudo que eu realmente era. Ele
me elogiou muito e conversou até começar a me beijar. No começo foi leve e
tranquilo, até que começou a forçar algo mais, foi tentando passar a mão no meu
corpo. Eu tentava sair daquela posição contra a parede e nada. Enfim, ele forçou
a mão dentro da minha calcinha e eu mordi o lábio dele com muita força e
empurrei e gritei: "Você está louco? Está achando que sou o quê?"
Para não chamar mais atenção, ele pediu desculpas e disse que se exaltou, mas
chegou perto do meu ouvido e disse: "Você devia ficar feliz de um cara
como eu querer ficar com uma garota como você: deformada e queimada assim. Você
só serve para isso mesmo."
Ele saiu como se nada tivesse acontecido. Fiquei ali chorando por dentro, mas
sorrindo por fora. Voltei para casa e passei a noite chorando de ódio e ao
mesmo tempo pensando: "Será que nunca alguém vai me amar como eu sou, sem
ver a minha deficiência antes?".
Bom, acho que Deus me ouviu chorar naquela noite, pois alguns anos depois,
vivendo sempre essa insegurança, ele me mandou um adolescente esquisito de
capuz preto, bem nerd. Tínhamos muito em comum e, de acordo com ele, eu o
conquistei por ser uma baixinha muito brava. Conheci o Rafael (meu marido) com
18 anos e estamos juntos até hoje. São 16 anos juntos, três filhos, muitas
aventuras e a certeza de que em nenhum momento ele enxergou minhas mãos como
uma barreira.
Esse pequeno fato que aconteceu comigo e que poderia ter sido um trauma que
iria me impedir de me relacionar com outras pessoas para sempre, acontece todos
os dias com PCD (Pessoas com deficiência). Todos os dias, elas são ignoradas
como seres humanos que amam, que sentem prazer, que querem ser vistos por eles
mesmos e não por suas deficiências ou "histórias de superação". Todo
dia, pessoas nos excluem e nos colocam em um local de pena, de pessoas
incapazes de amar ou sentir prazer.
Eu consegui me defender naquele dia e mudar a minha história; porém, existem
milhares de histórias diferentes, principalmente de abusos sexuais com PCD. Por
isso, é fundamental, essencial, começarmos a falar sobre inclusão mais e mais.
Esse será o início da mudança de muitas histórias e de uma nova geração que
crescerá respeitando verdadeiramente as diferenças, sem sentir que tudo o que
um PCD faz é superação. Não superamos, conquistamos como toda e qualquer
pessoa. A minha conquista, minha trajetória de sucesso é ser um estilista de
noiva reconhecida, uma influenciadora, mão de 3 crianças. E a sua?
Juliana Santos - a.k.a. Ju Sem As Mãos,
mulher empoderada, estilista de noivas e mãe de 3.
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