Lá se foi
um ano de pandemia, e continuamos sentindo os impactos diários desse nosso
"novo normal". Medo da doença, ansiedade e álcool gel passaram a
compor a nossa rotina. Conhecemos, agora, cada canto da casa, os barulhos dos
vizinhos - do home office, das conversas e discussões, as músicas que gostam,
os cheiros do almoço ou daquela tentativa falha de bolo queimando no meio da
tarde.
Instabilidade econômica e política, novos receios e preocupações. Pais
retornaram à sala de aula, agora on-line. As saudades, quantas saudades! Do
parque, do shopping, da academia, de jantar fora, da piscina do condomínio. Do
vovô, da tia, da sobrinha. Do abraço. Do cumprimento com variados números de
beijos: um em são Paulo, dois no Rio, se for em Minas são três. De assoprar
velas do bolo. E a certeza de que nunca mais seremos os mesmos.
O
coronavírus nos desafiou a enxergar o mundo com outros olhos.
Agora,
convido você a fechar os seus. Feche os seus olhos. Imagine que você seja uma
pessoa que tem uma relação bastante particular com o mundo. Você tem
dificuldade em expressar suas necessidades e sentimentos, em entender o que os
outros dizem ou demonstram através de gestos e expressões faciais. E como você
não compreende muito bem esse mundo aqui fora, tudo traz uma sensação de
confusão e desordem, ruídos altos fazem até doer o ouvido. Não só a audição,
mas a sensibilidade da sua pele e o seu olfato também são diferentes: às vezes
um simples toque pode lhe causar espanto, um cheiro pode gerar irritação. É
difícil pra você organizar as sensações do seu próprio corpo e as do ambiente.
Então o seu mundo interno te convida. Te tranquiliza ficar só, se balançar ou
repetir movimentos, como se você mesmo se ninasse.
Uma em cada
160 crianças se sente assim. 70 milhões de pessoas no mundo.
O TEA -
Transtorno do espectro autista, ou autismo, é uma desordem do desenvolvimento
neurológico presente desde o nascimento e que afeta o comportamento do
indivíduo, principalmente a comunicação e a interação social (como a linguagem
verbal, a linguagem não verbal, a compreensão e sintonização socioemocionais).
Pode gerar comportamentos repetitivos e padrões restritos de interesse,
alteração de sensibilidade a estímulos ópticos, olfatórios ou táteis. Todos os
pacientes com autismo convivem com estas dificuldades em intensidades
diferentes.
É uma
síndrome da qual não pudemos ainda definir todas as causas e não conseguimos
evitá-la. Temos evidências, até o momento, de que há fatores genéticos
envolvidos: mutações espontâneas, que podem ocorrer esporadicamente, e herança
genética, transmitida de geração a geração. E há, ainda, outras evidências de
que fatores externos como estresse, infecções e exposição a substâncias tóxicas
também estão relacionadas à sua manifestação.
Todos fomos
compelidos a modificar abruptamente nosso cotidiano. Na casa de um autista, os
rituais - tão importante para estas crianças, para que elas se sintam seguras e
parte deste mundo aqui fora - foram completamente alterados e restritos. O que
ele conhecia sumiu! E depois precisou ser reconstruído. As dicas visuais, como
medidas de ajuste, ajudam: a figura dos passos da rotina ao acordar, como
trocar de roupa, escovar os dentes, tomar o café da manhã. Manter a programação
da escola também é benéfico: o horário de acordar, o horário do lanche, momento
da atividade e da brincadeira.
A escola e
as terapias necessárias foram transformadas de toque e de proximidade em tela
de computador. Tão importantes de serem preservadas, tiveram que ser revisadas,
reorganizadas de maneiras diferentes e criativas. O terapeuta e o professor
passaram a orientar a brincadeira e o exercício.
Mas em casa
os barulhos são outros, ler as expressões do rosto, que já era difícil, agora
ocultas por máscaras, ficou confuso. Temos uma miscelânia de sentimentos para
lidar: a criança e os pais, que também estão aflitos. Mas sem agitação
particular sobre o corona: o transtorno do espectro autista não é fator de
risco para a COVID-19! As chances são as mesmas das demais crianças. Mas... A
ansiedade. Como se intensificou esse sentimento! E que justo, não é? Para os
pais, para os professores e para os autistas. E tivemos que tomar cuidado para
não aumentar a medicalização imprópria. É esperado, diante da imprevisibilidade
e falta de controle da situação, que aumentem os comportamentos repetitivos e o
isolamento, como forma de regulação. Já percebeu que agora temos ficado mais
tempo em redes sociais e, mesmo com a família toda em casa, cada um preso à sua
atividade e ao seu espaço? Imagine só para aquele que já tende a se sentir
seguro neste movimento!
Que bom que
a telemedicina também chegou para ajudar: o paciente autista e o paciente
"família do autista" também. Vamos nos lembrar de cuidar também de
quem cuida, revezando a função de estar com a criança com períodos de
autocuidado, descontração e reencontro consigo, e procurando ajuda profissional
quando necessária. Quantos recursos temos hoje, inclusive em práticas
integrativas que nos auxiliam no cuidado.
Mas bela e
resiliente sem igual, a criança foi transformando tudo em oportunidade.
Enxergando diferente, viu uma janela que não podemos perder! Estar em casa,
alterar o dia a dia, conviver com novas sensações, de repente, possibilitou o
desenvolvimento interpessoal e aprofundou o vínculo afetivo com os pais,
irmãos.
Vamos
juntos com eles nesse barco e reaprender a brincar. Tornar este momento juntos
único, ensinar o valor simbólico da brincadeira: cuidar do bebê, a corrida de
carrinho, fazer comidinha, fazer o lápis de cor virar a espada do guerreiro. O
autista precisa que o guiem nesse universo imaginativo. Traz bons resultados
também inserir a criança na cooperação de atividades domésticas. Reinvente o
toque, a sensação de texturas, a exploração dos sentidos em contexto lúdico:
que tal brincar de bolhas de sabão perfumadas, de adivinhar o objeto colocado
nas mãos com os olhos fechados, pintura em papel com gelos coloridos,
cantarolar músicas e cantigas de roda?
O autista, ou melhor, a criança e sua família se conectando e se
conhecendo. E, enquanto está tudo distante, ninguém ficará isolado.
Dra. Renata Sacaloski - Médica pediatra do Vera Cruz Hospital
especializada em Pediatria do desenvolvimento e comportamento (CRM 157.093 -
RQE 67.082)