Ao tempo do mensalão não havia dúvida
sobre a natureza indecente do processo de compra de votos parlamentares. Nenhum
veículo ousou afirmar que tal conduta tivesse algo a ver com democracia e com o
jogo político. Nem o Lula! Em 2005, ele reuniu o ministério na Granja do Torto
e pediu desculpas à nação, dizendo-se "traído por práticas
inaceitáveis". Ninguém na mídia duvidava de que comprar votos no Congresso
para formar base de apoio fosse prática inaceitável.
Quem quiser refrescar a memória pode ler aqui (1)
as 122 páginas do voto com que o relator Joaquim Barbosa esmiuçou as motivações
daquela descarada iniciativa. Quinze anos mais tarde, o mensalão, referido a
tudo que veio depois, parece trambique no jogo de cartas em casa de repouso
para idosos. Ainda assim, por indecente, derrubou José Dirceu da chefia da Casa
Civil e o converteu em bode expiatório do chefe. Ninguém na mídia brasileira
fez qualquer esforço para defender aquela forma de angariar votos.
Antes mesmo do mensalão, ainda no
governo FHC, é bom lembrar, a imprensa já vinha denunciando a troca de favores
por votos parlamentares. Cargos e liberação de verbas compunham o cardápio de
operações comerciais que atendiam pelo nome de "é dando que se
recebe", ou de "toma-lá-dá-cá". Nelas, os votos eram cedidos sem
convicção. O que mais importava não era a matéria em deliberação, mas a
liberação da quantia ou o cargo provido. O Estado inchava e encarecia ao ritmo
das demandas. Para um número significativo de parlamentares, o mandato, por si
só, é pouco, mas abre a porta para muito mais. E cada vez mais.
***
A Lava Jato, o impeachment e a vitória de
Bolsonaro elevaram o nível de estresse das redações. Décadas de colaboração e
alinhamento com o esquerdismo hegemônico foram devorados pela boca da urna e a
vida missionária da esquerda perdeu fontes de custeio.
Em março de 2019 o centrão se recompôs e
retomou o hábito de chantagear o governo. Já então, porém, inculpar Bolsonaro
tornara-se o esporte preferido das grandes redações. Em relação a tudo que
aprontam os malasartes dos outros poderes (Toffoli, Maia, Alcolumbre), a
inacreditável mídia fechou os olhos, lavou as mãos e terceirizou o direito de
opinião para as redes sociais. A Globo e a Globo News atacam o governo com o
jogral de seus comentaristas.
O
Congresso criou as emendas impositivas, individuais e de bancada para controlar
R$ 42 bilhões do Orçamento e a inacreditável mídia fez e continua fazendo cara
de paisagem! A galinha da União sendo depenada em proveito eleitoral dos
congressistas e a mídia dá força: "O Congresso é o senhor do
orçamento". Para cozinhar, sim; para saborear individualmente, não. Uma
coisa é o parlamento como um todo, o orçamento como um todo. Outra é
transformar tudo numa pizza com 594 fatias.
A grande imprensa não enxerga isso?
Minha consciência está tranquila. Como
adversário do presidencialismo, há mais de 30 anos denuncio o que chamo
presidencialismo de cooptação, em que maioria é coisa que se compra e voto é
coisa que se vende. A novidade é que, se o Congresso derrubar o veto de
Bolsonaro a esse fatiamento das despesas não vinculadas, o governo estará
neutralizado, imobilizado.
Os partidos e seus congressistas, que antes
recebiam ministérios, estatais e cargos da administração como forma de
cooptação, perdidos os cargos, meteram fundo a mão no orçamento da União. A
imprensa, enquanto isso, não cansa de elogiar a "autonomia do
parlamento" como se, no presidencialismo, o legislativo não vivesse eterno
déficit de responsabilidade. É por causa desse déficit que o Congresso vem
agindo como age, contando, agora, com matreiro piscar de olhos de grandes
veículos da imprensa nacional.
Percival Puggina - membro da Academia
Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais
e sites no país. Autor de Crônicas contra
o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do
Brasil. Integrante do grupo Pensar+.