O trabalho é uma das temáticas mais presentes no cotidiano e considero necessário admitir as injustiças das suas regras para podermos nos emancipar no trabalho. Assim sendo, é necessário emancipar o Édipo para criar as identificações e seguir em busca de outros elementos.
É preciso entender os mecanismos de controle de
Recursos Humanos para superar nosso desamparo e construirmos uma relação
emancipatória com o trabalho. Em seu livro Trabalho Vivo: Trabalho e
Emancipação, o médico ocupacional e
psicanalista, Christophe Dejours, chama de “emancipação no trabalho” a
construção da “Identidade Profissional”. Assim pelas regras passaríamos da
opressão para o reconhecimento no trabalho, aquele reconhecimento que permite
perceber o valor gerado e a beleza de como este valor foi criado.
O pensamento edificante é que eu trabalho, porque
construo algo de valor para alguém e assim gero valor para a sociedade,
portanto, sou útil. Faço isso de uma forma bela, única e cada vez melhor, numa
constante construção do belo profissional que idealizo. Dejours expõe em sua
obra que eu expando meu corpo erótico enfrentando as dificuldades que o ato de
trabalhar me impõe. É adquirindo habilidades que amplio meu entendimento do
ofício e me torno útil e único.
A dedução é que esta emancipação ou construção da
identidade profissional se concretiza no reconhecimento. O outro me mostra sua
admiração e espelha minha utilidade e a estética do meu trabalho, e assim a
minha utilidade e beleza. O outro que reconhece pode ser meu colega de ofício,
meu gestor, o sistema de avaliação e as formas de incentivo das empresas.
Mas a solução para as atuais regras de trabalho estão apenas começando. Em
minha prática, em algumas empresas já construí sistemas de avaliação de
reconhecimento ao invés de sistemas punitivos. Já criei, inclusive, metas
coletivas ao invés de individuais.
Estas regras de gestão têm sofrido mudanças ao
longo dos anos. Um exemplo de transformação recente foi a provocada pela
pandemia de coronavírus e pela evolução tecnológica. É o trabalho remoto. Com
ele desobrigou-se comparecer no local de trabalho tradicional e muitas
profissões passaram a ser exercidas à distância. Algumas regras, porém,
insistem e persistem ao longo do tempo e dificilmente são questionadas. Um bom
exemplo é a gestão de performance de funcionários através de rankings.
As consequências de estar com a performance
pior do que seus pares, em um determinado contexto, acarreta punições que
passam por dissabores como redução na remuneração (remuneração variável),
exclusão de processos de carreira e promoção, e até em desligamento.
Já os melhores recebem remuneração melhor, promoção
e um período de segurança até o início de novo ciclo de avaliação. É
nitidamente um estímulo pela competição e pelo medo. Esta competição, esta
vontade de ser melhor e de vencer nos faz ultrapassar limites, aumentar nossa
dedicação pelo temor de ser pior que os demais. Provoca alta eficiência a curto
prazo e assim parece ser uma boa forma de gestão.
Uma das consequências desta regra é a necessidade
de criar critérios de comparação que podem ser, por exemplo, de quantidade de
atendimentos de um teleoperador, o lucro líquido de um fundo de investimento
administrado por um economista, um índice de satisfação de clientes de
vendedores de uma loja, a quantidade de produtos manufaturados em uma linha de
montagem, o número de faltas ao trabalho ou até a quantidade de horas
trabalhadas por um vigilante.
Estes critérios desconsideram as características
dos profissionais e suas peculiaridades como gênero, idade, expertise,
moradia, etnia, situação socioeconômica, etc. No mundo do trabalho é comum um
jovem recém-formado ser considerado de alta performance quando comparado a uma
mulher que acaba de retornar de sua licença maternidade. Em algumas ocasiões os
meses de licença contam como se a recente mãe não tivesse produzido nada. Em
outras descontam-se os meses parados como se esta fosse a única diferença em
sua performance entre os dois profissionais comparados.
Os critérios desconsideram também oscilações dentro
do próprio contexto de trabalho, como por exemplo, o resultado das vendas de
dois gerentes que cuidam de regiões diferentes. Um do Nordeste e outro do
Sudeste, ou um do centro de uma capital e o outro da periferia. Os resultados
financeiros das vendas são comparados e para esta sistemática funcionar um
necessariamente tem que ser melhor que o outro.
Desta forma organizamos o trabalho estimulando a competição e o medo. Estas
práticas geram sofrimento através da degradação dos relacionamentos, da
insegurança, sensação de injustiça e outras consequências danosas.
Ao invés de realização profissional, ao invés de orgulho de ser o profissional
que é, encontramos uma insatisfação e uma perda de sentido do trabalho.
A relação com o trabalho passa a ser de sofrimento
sem sentido. “Sextou” se transforma num grito de libertação dos cinco dias de
penúria. Um grito regado a cerveja e outras bebidas etílicas e, portanto,
ansiolíticas. O trabalho estimulado pelo medo e pela competição nos afasta do
valor a ser gerado, do papel positivo que o trabalho tem em nossas vidas quando
produzimos algo relevante e de forma bela.
Além da relação deteriorada com o trabalho
prejudicamos os relacionamentos. Ao invés de construir colaboração construímos
rivais em um contexto individualista. Mas por que não mudamos essas regras de
gestão de recursos humanos por uma lógica mais humana? Por que não questionamos
a organização do trabalho?
Christophe Dejours explica no seu livro os
mecanismos de defesa que fazem com que estas incoerências sejam sustentadas até
por quem as vive diariamente. Ele chama o fenômeno de mecanismos coletivos de
defesa. Na minha prática profissional, não como psicanalista clínico em
consultório, mas como consultor de empresas para fazer programas de saúde
mental, me deparo com um fenômeno recorrente: as regras que geram sofrimento
raramente são responsabilizadas. O que observo é a personificação da injustiça
e isso é desalentador.
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