Opinião
Em 463 a.C., Ésquilo venceu o festival de teatro grego com a trilogia da
qual fazia parte a peça As Suplicantes, única a chegar até nós. A tragédia conta
a história de 50 mulheres egípcias que fogem para Argos em busca de proteção
contra a lei do Egito que as obrigara a casar contra a vontade delas. O rei de
Argos, Pelasgo, sabia que se aceitasse o pedido de asilo das estrangeiras,
haveria guerra, pois o Egito não relevaria tal afronta às suas leis e costumes.
Por outro lado, havia a tradição sagrada entre os gregos da hospitalidade,
prática que cultivavam como um símbolo de sua civilidade. Importante ainda
destacar que as suplicantes eram mulheres, negras e que adoravam outros deuses.
Isto é, diferentes em quase tudo dos gregos, mas iguais no direito à dignidade.
O rei então submete o pedido das egípcias aos cidadãos da cidade, que aprovam o
pedido de acolhimento por unanimidade. A vontade geral, mesmo diante do perigo
da guerra, não nega o que deve ser o direito de cada indivíduo, mesmo que de
outra terra, outro sexo, outra fé: viver de maneira digna e honrada.
Quase vinte e cinco séculos depois, deparamo-nos, diariamente, nos
gestos de muitos -- adultos, jovens e crianças – a negação da condição fundante
da comunidade ocidental: o respeito pela diferença. Nomes precisaram ser
inventados para delinear esse mal que nega ao indivíduo o direito de conviver:
racismo, xenofobia, machismo, etnocentrismo, gordofobia, capacitismo. E a lista
não para de aumentar.
Recentemente, a atriz Samara Fellipo sofreu no coração a violência
praticada contra sua filha, na escola onde ela estuda. A menina foi agredida
por causa de sua pele preta, porque outras adolescentes consideraram essa
diferença em relação às suas próprias peles uma autorização para o escárnio,
para a humilhação, a discriminação, o anátema. Jovens que devem ter conversado
previamente entre si e decidido causar um dano à colega por causa da sua cor da
pele, ainda mais destacada na escola particular da elite branca paulista.
Talvez acreditassem que a jovem filha da atriz não devesse estar ali, porque
esse lugar não lhe pertence, por ser um lugar de privilégio e privilégio é um
lugar branco. E fizeram o que fizeram, acreditando em outro privilégio tão
comum às elites nesse país que vive sob o manto fantasmagórico de trezentos
anos de escravidão: a impunidade.
A mãe, porém, não se intimidou e denunciou a escola e agora exige rigor
na punição. Creio que essa punição deva ser pedagógica e não “criminal”. Não é
uma solução tirar algo dessas adolescentes, mas dar-lhes o que lhes falta:
civilidade. E também para as famílias delas, porque é difícil imaginar que uma
distorção dessa gravidade na noção de indivíduo e de cidadão tenha sido obra
apenas da escola. Punir com a expulsão, por exemplo, implica negar a elas
aquilo para a qual a escola deveria estar preparada desde sempre: educar para a
vida comum. Expulsar e devolver para os pais decidirem o que fazer com as
agressoras pode ser um veneno ao invés de um remédio, pois não há garantia de
que os pais necessariamente repudiam o que as filhas fizeram. Afinal, como
saber de qual lugar saiu a primeira frase de preconceito racial, a primeira
piada – que os racistas insistem em travestir de “brincadeira”-- ou mesmo o
primeiro comentário sobre a cor preta da pele da menina que estuda com as
filhas.
O que deve ser exigido – e é hora de fazê-lo efetivamente – é lembrar, como afirma a filósofa Hannah Arendt, que educar não é apenas transmitir conhecimentos, mas assumir responsabilidades. E a responsabilidade por práticas como essas que atingiram a jovem filha da senhora Samara – e que se espalham em uma cruel teia de violência por escolas públicas e privadas de todo o país – é de cada um de nós, como foi do rei Pelasgo e do povo de Argos. Se para acabar com a discriminação, que permite troçar do corpo do outro como se fosse um brinquedo de madeira, for preciso enfrentar a guerra, que cavemos trincheiras e portemos as armas possíveis para vencer esse mal. Ou logo não poderemos mais olhar uns nos olhos dos outros.
Daniel Medeiros - doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros
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