- Uma jovem mãe escuta de pessoas da sua comunidade que o leite materno é fraco e começa a usar fórmulas e engrossantes na alimentação do seu bebê, a despeito da insistência do pediatra no aleitamento materno exclusivo.
- Uma adolescente que inicia sua vida sexual sabe
da importância do uso de preservativos para prevenir doenças e gestação
indesejadas, mas não consegue dialogar com o namorado que prefere não usar,
alegando ser confiável.
- Um jovem ciclista morre por um traumatismo
craniano, morte que teria sido evitada pelo uso do capacete.
- Um senhor aposentado acaba de ficar cego por um
diabetes negligenciado por anos.
- Um casal de jovens pais leva rotineiramente o
filho ao pronto socorro nas primeiras horas de febre, pois “vai que é algo
grave”.
Exemplos não faltam e esses não são incomuns à
nossa realidade, já nos deparamos com situações semelhantes a essas. E assim,
pessoas e sistemas de saúde no mundo todo precisam lidar com sofrimento, mortes
e custos evitáveis, todos por consequência do baixo letramento
em saúde. O termo, por vezes traduzido também como literacia
em saúde - do inglês health literacy - ainda não é muito
conhecido. Trata-se da habilidade que se tem de acessar, compreender e ter
crítica sobre a credibilidade de uma informação em saúde, bem como ter a
motivação para colocar esse conhecimento em prática. Significa também conseguir
se comunicar adequadamente sobre o tema e trafegar eficientemente no sistema de
saúde em que se está inserido.
É comum se reduzir o letramento em saúde a conhecimento
em saúde, porém trata-se de uma simplificação grosseira. Aqui vale a tríade:
Conhecimento – Habilidades – Atitudes. Em outras palavras: não basta saber que
gorduras saturadas são nocivas à saúde (Conhecimento) se não se souber ler um
rótulo de informações nutricionais nos alimentos (Habilidades) e se não
optar por alimentos com menores níveis dessas gorduras no supermercado
(Atitudes). Conhecimento não determina obrigatoriamente comportamento, caso
contrário não teríamos médicos tabagistas, nutricionistas com maus hábitos
alimentares e educadores físicos sedentários.
Países europeus, Estados Unidos e Austrália têm
sido os pioneiros nesse campo. Ferramentas para aferir o grau de letramento em
saúde em diferentes contextos têm sido desenvolvidas, sendo que as principais
já começam a ser traduzidas e validadas para o Brasil. Os dados são
desanimadores. Comparações são difíceis, pela diversidade de testes e
contextos, mas estudos têm mostrado que apenas 12% dos norte-americanos possuem
níveis adequados de letramento em saúde. Os dados europeus e australianos,
apesar de menos graves, ainda são preocupantes. O Brasil ainda se encontra
muito aquém na aferição dos níveis de letramento em saúde de sua população. É
provável que boa parte das cerca de 700 mil mortes prematuras que acontecem
todo ano no Brasil – dados pré pandemia de Covid-19 – poderia ser evitada pela
melhoria do letramento em saúde da população. Sem estudos de abrangência
nacional, torna-se mais desafiador o desenho de estratégias efetivas de promoção
em saúde. Ao contrário do que se presume, o baixo letramento em saúde atinge
todas as classes sociais e níveis educacionais, porém suas consequências são
desproporcionalmente piores em populações mais vulneráveis. Crianças cujos pais
e cuidadores tenham baixo letramento em saúde não apenas têm sua segurança
ameaçada, mas também deixam de receber conhecimentos, e desenvolver atitudes e
comportamentos que serão fundamentais para a sua saúde, tanto na prevenção de
doenças, bem como nos cuidados de condições agudas e crônicas. Como exemplos de
efeitos deletérios do baixo letramento em saúde de pais e cuidadores, temos o
conhecimento e comportamentos inadequados sobre nutrição; maiores taxas de
obesidade e desnutrição; mais erros de medicação; maior uso de serviços de
emergência, entre outros.
O tamanho do prejuízo também assombra. Nos Estados
Unidos, estima-se que entre 7 e 17% de todos os gastos em saúde decorram do
baixo letramento em saúde da população, o que, anualmente, pode significar um
prejuízo de até 238 bilhões de dólares no país. Se ações não forem tomadas para
a reversão desse cenário, estimam-se gastos da ordem de 1,6 a 3,6 trilhões de
dólares para as futuras gerações de cidadãos norte americanos. É inegável que a
sustentabilidade de sistemas públicos e privados de saúde passa
obrigatoriamente pela melhora dos níveis de letramento em saúde em todo mundo.
Não à toa, a Declaração de Xangai, fruto da 9ª Conferência Global de Promoção
da Saúde, promovida pela OMS em 2016, estabeleceu três eixos de ação para
incluir a Promoção da Saúde no Desenvolvimento Sustentável: Boa Governança,
Cidades Saudáveis e Letramento em Saúde. Periódicos de impacto na área
econômica, como a revista The Economist, têm dedicado edições especiais
exclusivamente para analisar a questão. Ademais, diversos estudos vêm
comprovando que o investimento em letramento em saúde vale a pena. Análises de
custo-efetividade de diversas estratégias de intervenção para melhora do
letramento em saúde na Europa calculam um retorno sobre o investimento de até
27,4 euros e um retorno social de até 7,3 euros por euro investidos. Em relação
aos cuidados de crianças, estratégias de intervenção para melhorar o letramento
em saúde de pais e cuidadores já foram desenhadas e testadas em outros países,
com resultados significativos como maior sucesso da amamentação, bons hábitos
alimentares, melhores níveis de atividade física, menor uso de serviços de
emergência, entre outros.
Por se tratar não apenas de conhecimento, mas
também de habilidades e atitudes, a melhor estratégia para formar cidadãos
letrados em saúde é iniciar desde a primeira infância. Contudo, apesar de mais
eficiente, os impactos da intervenção iniciados na infância demorarão a ser
percebidos. É importante intervir também em adultos e idosos, que sofrem no
presente com seu baixo letramento em saúde.
Recentemente, foi criado o termo letramento em
saúde institucional. Refere-se ao quanto um sistema de saúde, suas instituições
e seus agentes realizam ações que considerem e promovam o letramento em saúde
daqueles de quem cuidam. Por exemplo, profissionais de saúde que atuam na linha
de frente, em especial na Estratégia Saúde da Família – ESF, podem mitigar os
efeitos do baixo letramento em saúde procurando alinhar a comunicação e as
necessidades de cuidados de saúde com as competências de letramento em saúde
das famílias. A FIOCRUZ recentemente vem promovendo a formação de profissionais
de saúde em letramento em saúde.
Quando entendermos que o letramento em saúde é peça
fundamental na complexa engrenagem dos sistemas de saúde e que é nossa melhor
estratégia para melhora da qualidade de vida, longevidade produtiva,
sustentabilidade de sistemas de saúde e, por reflexo, blindagem anti-fake news,
será impossível continuar ignorando a questão. É urgente que o país com o maior
sistema público de saúde passe a trazer o letramento em saúde para o centro da
discussão e para o planejamento das políticas de atenção básica.
Raquel Ajub Moysés - médica do Hospital das
Clínicas de SP, Mestre em Saúde Pública pela Universidade de Harvard e
idealizadora da Curar Educação em Saúde
Heloisa Helena Oliveira - economista e Diretora-presidente do Instituto Opy de Saúde
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