Ao falarmos sobre
doenças raras, é natural associá-las a um grupo pequeno de pessoas. De fato, se
comparadas a outras enfermidades mais comuns, o número é realmente reduzido.
Todavia, somadas, elas afetam cerca de 3,5 a 6% da população, o que equivale ao
redor de 260 a 450 milhões de pessoas no mundo, segundo dados da European
Journal of Human Genetics1. Devido à complexidade dos casos,
estima-se que para 95%2 delas ainda não tenha um tratamento
medicamentoso disponível. Entretanto, vários estudos clínicos com terapias
inovadoras estão sendo desenvolvidos em diversos países, com a intenção de dar
mais qualidade de vida a esses pacientes.
Quando se trata de
uma doença rara que pode ser agravada pela alimentação, como no caso da
síndrome da quilomicronemia familiar (SQF), que afeta a produção de uma enzima
chamada lipase lipoproteica, responsável pela metabolização da gordura no
sangue, a necessidade de tratamento fica ainda mais evidente. Em pessoas com
essa condição, as taxas de triglicerídeos podem chegar a concentrações de
15.000 mg/dL ou mais, quando os níveis não deveriam passar de 150 mg/dL3.
Entre os danos que esse excesso de gordura no sangue pode causar ao indivíduo,
está, principalmente, a pancreatite aguda, que pode levar a óbito.
A única terapia de
longo prazo atual é a restrição da ingestão total de gordura para menos de 10 a
15% das calorias diárias (15 a 20g por dia), que não é sempre bem-sucedida na
prevenção da pancreatite aguda.4 Buscando tratamentos que
proporcionem mais qualidade de vida às pessoas com SQF, conduzimos em 12
países, incluindo o Brasil, um estudo de fase 3, duplo-cego, randomizado, de 52
semanas, chamado Approach, para avaliar a segurança e a eficácia de um
medicamento em 66 portadores da SQF -- número consideravelmente grande se
lembrarmos ser uma doença rara. Os pacientes foram designados aleatoriamente,
em uma proporção de 1:1, para receber uma dose de 300 mg do medicamento, por
via subcutânea, uma vez por semana, ou o placebo. Os pacientes que receberam a
terapia tiveram diminuições nos níveis médios de triglicérides de 77%. Durante
o período de tratamento, três pacientes no grupo de placebo tiveram quatro
episódios de pancreatite aguda, enquanto um paciente no grupo do medicamento
investigacional teve um episódio, sendo 9 dias após receber a dose final.5
Este foi um ensaio
difícil de conduzir. Direcionado a uma doença muito rara, com um número de
pacientes potencialmente elegíveis relativamente pequeno e um protocolo do
ensaio muito rigoroso, exigindo que os pacientes fizessem exames de sangue
muito regularmente, cumprissem uma dieta rigorosa e ficassem por muitas horas
nos locais do ensaio em algumas datas de visita para monitoramento de
triglicerídeos pós-prandiais, após uma ingestão de gordura desafio. Nem todos
os pacientes mantiveram a medicação em longo prazo, mas a resposta lipídica
(redução dos triglicerídeos) foi mantida naqueles que continuaram o tratamento.
Se interrompido, seus lipídios lentamente voltariam à linha de base.
Apesar das
dificuldades, é muito importante desenvolver medicamentos para doenças órfãs. E
precisamos avançar nisso. Embora o número de pacientes afetados possa ser
relativamente pequeno em cada uma, cumulativamente existe uma grande carga.
Estima-se que exista cerca de 7 mil enfermidades raras no mundo2.
Mas os desafios para
os pacientes raros não terminam com a descoberta de novos tratamentos. Um dos
principais problemas é o acesso posterior à terapia. Como esse setor é bastante
pequeno, os custos de pesquisa e desenvolvimento são bastante altos,
dificultando o acesso a novas terapias, mesmo que exista uma grande necessidade
clínica ainda não atendida.
Idealmente, gostaria
de ver parcerias internacionais entre a indústria farmacêutica e os governos
para cofinanciar o desenvolvimento desses medicamentos e, em seguida, também
fornecer os tratamentos a preços específicos para as distintas realidades do
mundo - mais caros no mundo desenvolvido e um pouco menos caros no mundo em desenvolvimento.
De todo modo, há esperança para o futuro. Se tomarmos o exemplo da hipercolesterolemia familiar homozigótica, há 20 anos, havia somente um tratamento eficaz, a plasmaférese -- um procedimento automatizado de separação do sangue e retirada do excesso de lipídios. Agora, temos vários medicamentos que são altamente eficazes e permitem que muitos pacientes descontinuem a plasmaférese e atinjam valores de colesterol normais ou próximos do normal. Por tudo isso, precisamos avançar e buscar cada vez mais o desenvolvimento de estudos e pesquisas.
Dirk
Blom - chefe da divisão de Lipidologia da Universidade de Cape Town
1] European
Journal of Human Genetics - Acessado em 17/11/2021
[2] Biblioteca
Virtual em Saúde - Acessado em 17/11/2021
[3] Baass A,
Paquee M, Bernard S, Hegele RA. Familial chylomicronemia syndrome: an under
recognized cause of severe hypertriglyceridaemia [published online ahead of
print, 2019 Dec 16]. J Intern Med. 2019;10.1111/joim.13016.
[4] Burne JR,
Hooper AJ, Hegele RA, et al. Familial Lipoprotein Lipase Deficiency. In:
GeneReviews® [Internet]. Sea le (WA): University of Washington, Sea le;
1993?2020.
[5] Witztum JL, Gaudet D, Freedman SD, Alexander
VJ, Digenio A, Williams KR, Yang Q, Hughes SG, Geary RS, Arca M, Stroes ESG,
Bergeron J, Soran H, Civeira F, Hemphill L, Tsimikas S, Blom DJ, O'Dea L,
Bruckert E. Volanesorsen and Triglyceride Levels in Familial Chylomicronemia
Syndrome. N Engl J Med. 2019 Aug 8;381(6):531-542. doi: 10.1056/NEJMoa1715944.
PMID: 31390500.
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