A Constituição brasileira prevê que a saúde é direito de todos e dever do Estado (art. 196), mas permite expressamente a atuação da iniciativa privada no setor (art. 199). Ao contrário de outros países, em que determinados tratamentos apenas são disponibilizados pelo Poder Público, no Brasil sempre há a possibilidade de escolha pela medicina privada. Esse permissivo decorre do entendimento segundo o qual quanto mais serviços de saúde houver, melhor. As pessoas atendidas pelo sistema privado não sobrecarregam o SUS, deixando sua estrutura capaz de atender quem realmente precisa.
Não obstante, esse raciocínio é incompleto. A
oferta de serviços privados enfraquece o SUS. Quanto menos pessoas de alto
poder aquisitivo e capacidade de mobilização social dependerem do SUS, mais
precário tende a ser o sistema público. Quer uma prova? O SUS é referência em
serviços de alta complexidade e altíssimo custo (dos quais todos dependem) e
sofre na atenção básica e na média complexidade (dos quais apenas pessoas de
menor poder aquisitivo dependem).
Podemos comparar o SUS com a urna eletrônica. Por
que a urna eletrônica funciona tão bem no Brasil? É preciso pensar na noção de
‘bem público’, entendido como aquele que apenas pode ser usado de modo
igualitário por todos. Um sistema de votação só funciona se todas as pessoas
usarem o mesmo padrão de urna eletrônica. Se ricos pudessem votar em urnas
diferentes das dos pobres, teríamos um caos eleitoral no Brasil. Esse exercício
comparativo indica que é falsa a crença de que a oferta de serviços privados
colabora com o SUS, diminuindo a demanda sobre sua estrutura. Afinal, seu
efeito secundário pode ser muito mais nocivo.
O mesmo acontece com a vacinação contra a COVID-19
por clínicas privadas. Neste caso específico há, ainda, dois agravantes. O
primeiro é a limitação da oferta de vacinas ao setor público. O segundo é a
necessidade de que todas as pessoas sejam vacinadas, com prioridade para os
grupos de risco.
Estes são os motivos pelos quais, nos Estados
Unidos, onde não existe um sistema público de saúde, o governo federal foi
rápido ao iniciar uma campanha universal e gratuita de vacinação contra a
COVID-19. Em terras ianques não haverá, no curto prazo, possibilidade de
pagamento pela vacina. Todos que quiserem ser vacinados, de Bill Gates a
Michael Jordan, devem esperar sua vez, conforme o plano nacional de vacinação.
Esse padrão de ação governamental tem se repetido
mundo afora. E nem mesmo as indústrias farmacêuticas têm demonstrado interesse
em vender no varejo para grupos privados. A Pfizer, por exemplo, informou que
seu plano inicial é vender a vacina apenas a governos.
Para as indústrias farmacêuticas, tal estratégia é
vantajosa, pois governos são grandes compradores. Um único contrato pode conter
vacinas para toda a população de um país. Para os governos, tal estratégia é
também benéfica, pois é possível dimensionar o quantitativo para imunização de
todas as pessoas, com definição sistêmica de questões logísticas e
epidemiológicas. Para a população, tal estratégia é também salutar, pois
garante imunização universal, de acordo com a disponibilização da vacina e
conforme os grupos de risco.
Esse cenário ideal, contudo, não ocorre no Brasil.
Por aqui a ausência de uma política pública nacional de vacinação deu origem à
atuação paralela de Estados e Municípios. Além disso, empresas negociam a
compra de vacinas para oferta privada. Afinal, como dito acima, a Constituição
Federal garante a liberdade de atuação privada no setor de saúde.
Assim, a venda de vacinas não pode ser simplesmente
proibida no Brasil. Sua comercialização só pode ser evitada caso o Poder
Público requisite tais bens para uso na política pública de vacinação contra a
COVID-19. Além dessa hipótese, o Poder Público pode interferir na venda de
vacinas por meio da regulação, com determinação, por exemplo, de observância à
preferência de atendimento dos grupos de risco. É provável, portanto, que a
depender da produção mundial de vacinal, em pouco tempo tenhamos sua oferta
privada no Brasil.
Meu instinto individual e egoísta de sobrevivência
indica que eu pagaria boa parte de meus vencimentos por uma vacina contra a
COVID-19. Mas minha racionalidade me obriga a dar muito mais para termos em
andamento um plano nacional, único e igualitário de vacinação contra o vírus.
Fernando Mânica - doutor
pela USP e professor do Mestrado em Direito da Universidade Positivo.
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