Um comportamento raro em peixes, embora conhecido em baleias, lobos, golfinhos e outros poucos mamíferos, foi registrado pela primeira vez nos poraquês, peixes-elétricos da Amazônia que podem dar descargas elétricas de até 860 volts. A tática, chamada de predação social, consiste em realizar busca e ataques coordenados, a fim de capturar presas e beneficiar todo o grupo. O estudo – financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Smithsonian’s Global Genome Initiative, National Geographic Society e FAPESP – foi publicado na revista Ecology and Evolution.
Os pesquisadores do
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus, e da Smithsonian
Institution, nos Estados Unidos, descreveram o comportamento em um lago da
Estação Ecológica Terra do Meio, no Pará. Conhecida por caçar solitariamente à
noite, a espécie de poraquê Electrophorus voltai foi
registrada em um grupo de cerca de cem indivíduos, cada um com até 1,8 metro de
comprimento.
Ao amanhecer e no pôr
do sol, os poraquês migram para uma parte mais rasa do lago, cercam cardumes de
pequenos peixes, conhecidos como piabas ou lambaris, e emitem fortes descargas
elétricas. As presas saltam para fora e são devoradas quando voltam atordoadas
para a água.
“Eu estava em campo,
realizando outro trabalho, quando vi aquela enorme concentração de poraquês. De
tempos em tempos, eles davam descargas e as piabas pulavam. Aquilo foi,
literalmente, chocante. Nos mais de 250 anos desde que esse animal foi descrito
pela primeira vez, esse comportamento nunca havia sido registrado”, conta
à Agência FAPESP Douglas Bastos, primeiro autor do
trabalho e doutorando no Inpa.
Bastos faz parte do
grupo liderado por Carlos David de Santana, pesquisador associado do National
Museum of Natural History, da Smithsonian Institution, em Washington. Em 2019,
a equipe descreveu duas novas espécies de poraquê. Uma delas é justamente
a E. Voltai, que realiza a predação social e tem a maior
descarga elétrica já registrada em um animal, 860 volts (leia mais em: agencia.fapesp.br/31422).
Os trabalhos integram
o projeto “Diversidade e evolução de Gymnotiformes”, financiado pela FAPESP e coordenado por Naércio Menezes, professor do Museu
de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP).
“Nossa hipótese
inicial é que locais como esse, com grande abundância de presas e abrigo para
dezenas de poraquês, favoreçam a caça em grupo e o desenvolvimento da
estratégia de predação social. Por isso, é possível que o fenômeno ocorra em
outros locais e até mesmo com outras espécies de poraquê. Só não foi registrado
ainda”, explica Santana.
Os pesquisadores
trabalham na criação de uma plataforma on-line, nomeada Projeto Poraquê, em que
moradores dos nove países da Amazônia possam submeter vídeos de outros casos de
predação social por poraquês. A iniciativa deve guiar novas idas do grupo a
campo.
Predadores crepusculares
Bastos observou o
fenômeno pela primeira vez em 2012, quando fez os primeiros registros com uma
câmera. Demorou mais dois anos para que conseguisse organizar a logística para
ir novamente ao local, a cerca de 500 quilômetros de Altamira, no Pará,
percurso que leva aproximadamente cinco dias para ser feito de barco, pelo rio
Iriri. Pegando carona num pequeno avião que passou pelo local, ele conseguiu
observar e filmar o grupo em diversos momentos ao longo de 72 horas.
Na maior parte do dia
(entre 7h30 e 17h) e durante toda a noite (19h30 às 5h), os animais repousam na
parte mais funda do lago (três a quatro metros de profundidade). No alvorecer e
no crepúsculo, porém, eles migram para uma área mais rasa, com menos de um
metro de profundidade. Nesses horários, as piabas estão indo para o leito se
alimentar ou voltando para a margem para descansar. É o momento em que os
poraquês atacam.
“Enquanto a espécie
normalmente caça solitariamente durante a noite, aproveitando que as presas
estão repousando, esse grupo é de predadores crepusculares: caçam nos horários
de sol nascendo ou se pondo, quando as presas estão começando o dia ou
encerrando as atividades”, afirma Bastos.
Os poraquês nadam em
círculos em volta de um cardume, concentrando o maior número possível de
piabas. Aos poucos, pequenos subgrupos de dois a dez indivíduos separam parte
do cardume e conduzem as presas para a margem. Então, um ou mais poraquês desse
subgrupo disparam uma forte descarga elétrica, fazendo com que as piabas
saltem, atordoadas pelo choque.
“Disparados
simultaneamente por dez indivíduos, em teoria esses choques podem gerar uma
descarga de 8.600 volts!”, diz Santana.
Os peixes-elétricos
então abrem a boca e engolem o máximo de presas que conseguem. Outras espécies
de peixes carnívoros, como o tucunaré (Cichla melaniae),
podem se aproveitar das presas atordoadas. Após cinco a sete ataques em uma
hora, o grupo inteiro retorna para o fundo do lago.
Os pesquisadores agora
pretendem coletar alguns animais e implantar um pequeno transmissor sob a pele,
que emitirá sinais de rádio, por sua vez captados por uma antena em terra
firme. Assim, a movimentação dos poraquês poderá ser monitorada de forma
contínua, permitindo determinar padrões e mesmo possíveis hierarquias dentro do
grupo.
Além disso, o grupo
planeja medir a potência das descargas elétricas emitidas, a fim de saber tanto
a voltagem daquelas disparadas para atordoar as piabas quanto se há também
emissão de descargas fracas, que os peixes-elétricos de modo geral usam para se
comunicar. Assim, será possível saber se os animais se comunicam para coordenar
os ataques.
Por fim, a coleta de
amostras genéticas permitirá verificar se os indivíduos são parentes ou não.
Entre os mamíferos que caçam em conjunto, é comum que sejam irmãos liderados
por um genitor mais velho.
“Esse achado é mais um
exemplo das oportunidades quase ilimitadas que se tem na Amazônia para
descobertas, seja de espécies, componentes químicos derivados de plantas para
medicamentos, entre outros. Sem falar de uma série de organismos e suas
histórias de vida únicas, ainda esperando para serem identificados, e da
umidade do ar produzida pela floresta, responsável pela maior parte da chuva
que alimenta o Brasil. Estudos como esse são uma oportunidade de relembrar a
importância da Amazônia e de tudo que podemos perder se não a preservarmos”,
conclui Santana.
O artigo Social predation in electric eels, de Douglas A.
Bastos, Jansen Zuanon, Lúcia Rapp Py-Daniel e Carlos David de Santana, pode ser
lido em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/ece3.7121.
https://www.youtube.com/watch?v=AlV8mrFZxJ4&feature=emb_logo
André Julião
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/peixe-eletrico-da-amazonia-se-organiza-em-grupos-para-cacar/34996/
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