Em artigo divulgado no Journal of Experimental Medicine, grupo do Centro
de Pesquisa em Doenças Inflamatórias da USP revela que enzima relacionada à
produção de energia celular também participa da diferenciação de células
autoimunes envolvidas na inflamação exacerbada. Descoberta pode levar a
tratamentos mais eficazes (imagem: acervo do pesquisador)
Pesquisadores do Centro de Pesquisa em Doenças
Inflamatórias (CRID)
da Universidade de São Paulo (USP) descobriram que uma enzima ligada a
processos metabólicos também está envolvida na diferenciação de células imunes
e, por consequência, no desenvolvimento de doenças autoimunes. O achado pode,
no futuro, direcionar novos tratamentos e medicamentos mais efetivos e com
melhor custo-benefício para esse tipo de doença.
Em artigo publicado no Journal of Experimental Medicine, pesquisadores
descrevem o papel da enzima PKM2 (pytuvate kinase M2) – comumente envolvida na
produção de energia celular (glicólise) – no desenvolvimento e na manutenção da
inflamação exacerbada associada às doenças autoimunes.
“No estudo demonstramos que há uma
conexão entre metabolismo celular e sistema imune. Está ficando muito claro que
enzimas e outras moléculas metabólicas são importantes não apenas para o
metabolismo celular, mas também para outras funções, como a resposta imune.
Nesse caso específico, verificamos que a enzima PKM2 atua paralelamente na
diferenciação do linfócito Th17. Esse subtipo de linfócito desencadeia a
encefalomielite autoimune experimental, um modelo animal de esclerose
múltipla”, explica José Carlos Farias Alves Filho,
pesquisador do CRID, um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) apoiado pela FAPESP na
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP).
O estudo foi
conduzido durante o mestrado de Luis Eduardo Alves Damasceno,
bolsista da FAPESP e orientando de Alves Filho.
A jornada do linfócito T
Com o
objetivo de neutralizar especificamente diferentes tipos de patógenos, as
células imunes conhecidas como linfócitos T se diferenciam em uma variedade de
subtipos, como, por exemplo, nas células T auxiliares ou “helpers” 17 (Th17).
Esse subtipo, no entanto, está associado ao desenvolvimento e manutenção
da inflamação comum a doenças autoimunes.
Por
motivos ainda não totalmente compreendidos, nas doenças autoimunes como a
esclerose múltipla, artrite e psoríase a resposta imune pode ocorrer de
forma descontrolada, levando os linfócitos a reconhecer o próprio organismo
como patógeno, passando a atacá-lo.
Damasceno
desenvolveu seu projeto em modelos de encefalomielite autoimune experimental,
uma condição autoimune, inflamatória e desmielinizante do sistema nervoso
central. A condição causa a perda da bainha de mielina que recobre os neurônios
e é importante para a transmissão de impulsos nervosos. Esse modelo
experimental guarda semelhanças com o quadro observado em pacientes com
esclerose múltipla.
Já é
sabido que o linfócito Th17 tem papel importante na mediação tanto do
desenvolvimento da doença autoimune quanto na progressão da neuroinflamação
característica de algumas doenças desse tipo. Ao atuar na resposta autorreativa
inicial da doença, o linfócito Th17 passa a identificar antígenos presentes no
sistema nervoso central como uma ameaça, liberando então grandes quantidades de
uma proteína com ação pró-inflamatória chamada interleucina 17 (IL7), tanto no
fluido cérebro espinhal quanto em lesões ativas no tecido cerebral.
No estudo
realizado em cultura celular e modelo animal, os pesquisadores do CRID
observaram que a diferenciação celular para o Th17, assim como o
desenvolvimento da doença, depende da reprogramação metabólica, induzindo
inclusive mudanças para a glicólise. “A enzima glicolítica piruvato quinase M2
(PKM2) se mostrou um fator-chave que medeia a diferenciação celular Th17 e a
inflamação autoimune. No estudo, demonstramos que ela é muito expressa durante
a diferenciação do linfócito T para as células Th17”, diz Alves
Filho.
Nos testes in vitro, ao excluir a PKM2 específica para
células T houve prejuízo na diferenciação celular Th17 e os sintomas da doença
foram amenizados, diminuindo a inflamação e a desmielinização mediadas pelo
Th17. “Já nos testes realizados em camundongos que não expressam essa enzima,
conseguimos reduzir o desenvolvimento da doença em mais de 50%. Também fizemos
o estudo com drogas comerciais que inibem a PKM2”, afirma Alves Filho.
Os
pesquisadores analisaram ainda o uso de drogas comerciais que inibem a enzima
PKM2. “Utilizamos uma droga capaz de inibir a translocação nuclear da PKM2,
fazendo com que a enzima não chegue até o núcleo celular. Portanto, mesmo que o
linfócito expresse a enzima, ela não atua nesse processo de desenvolvimento da
doença. Ocorre diminuição da diferenciação de linfócitos Th17, o que reduz sua evolução”,
diz.
Custo-benefício no tratamento
Alves
Filho ressalta que a descoberta do papel-chave da enzima PKM2 no
desenvolvimento de doenças autoimunes abre caminho para o
estabelecimento de novas estratégias de tratamento.
Atualmente,
existem no mercado diferentes fármacos imunobiológicos para o tratamento de
doenças autoimunes, que atuam inibindo citocinas envolvidas na ativação e
diferenciação desses diferentes subtipos de linfócitos.
“Estima-se,
porém, que cerca de 40% dos pacientes por algum motivo não respondem bem a esse
tratamento. Para essa parcela da população existe outro tipo de tratamento com
os medicamentos imunobiológicos, que têm um benefício muito grande, mas são
extremamente caros e, portanto, não conseguem atingir toda a população”,
acrescenta.
A enzima
faz parte da plataforma de pesquisas de desenvolvimento de drogas do CRID. “No
estudo, utilizamos uma droga comercial que atua em um sítio alostérico da
enzima PKM2, bloqueando sua capacidade de se translocar para o núcleo do
linfócito”, relata.
Dessa
forma, os pesquisadores do CRID iniciaram um novo estudo, em colaboração com o
Laboratório Nacional de Biociências do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e
Materiais (LNBio-CNPEM), com o intuito de desenvolver novas drogas que atuem na
translocação da enzima. “Isso abre uma perspectiva futura de tratamento para
doenças autoimunes, ou para doenças inflamatórias que dependam dessa enzima.
Nessa próxima etapa, estamos buscando o desenvolvimento de novas drogas que possam
interagir com esse sitio de interação e que inibam a capacidade da enzima de
translocar para o núcleo.”
O artigo PKM2 promotes Th17 cell differentiation and autoimmune
inflammation by fine-tuning STAT3 activation pode ser lido em: https://rupress.org/jem/article/217/10/e20190613/151965/PKM2-promotes-Th17-cell-differentiation-and.
Maria
Fernanda Ziegler
Agência
FAPESP
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