O segredo de um regime democrático é a confiança
nas instituições. Nelas que o poder que emana do povo se materializa em
comandos (de fazer e não fazer) que buscam garantir o bem comum. O bem comum é
uma expressão chave para o regime democrático. Ele está sempre sendo tensionado
pelos indivíduos que desejam que o resultado final contemple os seus pleitos em
primeiro lugar. Por isso, é dinâmico e vive incorporando novas demandas.
No entanto, há um mínimo de condições que devem
estar à disposição de todos, sem o que dizemos que o regime está em déficit com
a parte dos cidadãos não atendidos. Como uma televisão com som mas sem imagem
ou um elevador que só sobe mas não desce. Inaceitável. A democracia é uma
invenção. Entre os demais seres vivos, ninguém deixa de fazer algo para
contemplar as necessidades dos outros. Pelo menos não intencionalmente,
consciente de que essa é a forma de se alcançar um bem comum.
Nesse sentido, podemos dizer que a democracia
é quase um milagre, pois frustra os instintos, controla as pulsões em nome de
um resultado nem sempre prazeroso, mas justo. A ideia de Justiça está atrelada
a este modelo político mais do que a qualquer outro. E justo não é algo que
traga sensações intensas. A democracia é morna, sem sal, com pouco tempero. Mas
é a base comum para que cada um possa incrementar seu prato sem ter de conviver
com o desconforto de que outros não terão café nem almoço e nem lanchinho da
tarde.
O problema central da Democracia é de eficácia e
eficiência. Ou seja, para ser bom, tem de funcionar. Quando as coisas não
funcionam, costumamos culpar o modelo vigente e passamos a defender algo que
funcione, que funcione no tempo certo e que não consuma todos os nossos
recursos. Se a Democracia não funciona, garantindo uma vida boa para os
cidadãos, voltamos ao estado da natureza, no qual os mais fortes, os mais
espertos, os mais rápidos, os mais ousados levarão vantagem e ainda dirão:
“desculpa, mas do jeito que estava não estava dando certo”.
Essa desnaturação do regime democrático ocorre
quando a administração do bem comum emperra. É como ligarmos o computador e o
wifi sumir; abrirmos a torneira e sair uma água marrom e mal cheirosa;
colocarmos a panela no fogão e não haver gás; sair na rua e ser assaltado
porque não há polícia; ficar doente e não ter hospital. É fácil saber do que
estou falando.
O perigo se intensifica quando acreditamos que
precisamos ter pessoas especiais para fazer a administração funcionar. É como
você achar que se a sua mãe abrir a torneira aí água límpida e cristalina
voltará a jorrar imediatamente. E, movidos por essa crença, vamos em busca
dessas pessoas. Ou melhor, nessas horas, essas pessoas é que se apresentam a
nós. Prometendo que com elas, tudo vai funcionar. E esquecemos então de que o
regime democrático precisa ter um fundamento - o bem comum - e um funcionamento
despersonalizado, desideologizado, despartidarizado, para que esse bem comum seja
alcançado. É uma coisa lógica: se eu tenho um lado, um conjunto de certezas, um
cor preferida, alguém sofrerá e não vou perceber ou não vou me importar.
Personalizar, ideologizar, partidarizar não são, portanto, garantias de bom
funcionamento do sistema. Pelo contrário, muda a direção dos propósitos que
fizeram as pessoas criarem esse modelo.
O pior momento na existência de uma Democracia é
quando não reconhecemos mais que as instituições são capazes de cumprir suas
funções e achamos que nós mesmos é que devemos assumir essas tarefas: a minha
lei, a minha segurança, a minha saúde, a minha educação. Atomizamo-nos de tal
forma que a própria noção de sociedade torna-se uma ficção ruim. Não aceitamos
mais contribuir para o fundo comum e, se possível, abandonamos o barco e
buscamos refúgio em outro lugar, renegando até mesmo nossa lembrança desse
tempo vivido. Ou então, apostamos tudo e entregamos nossas cidadanias nas mãos
de um salvador, de um síndico com poderes ilimitados, de um regenerador, de um
refundador, sem garantias nem direito ao arrependimento, pois não teremos mais
direitos de reivindicar nossos direitos. É como queimar o título de sócio do
clube. Ou rasgar as promissórias. Um caminho sem volta.
O segredo do regime democrático é fortalecer os
mecanismos de cumprimento do seu propósito fundamental, o bem comum. Dotá-lo de
profissionais qualificados e cercá-los de legislações protetivas e
fiscalizadoras, além de punições exemplares em caso de desvio de finalidade. O
melhor dia em uma democracia será quando não lembrarmos os nomes dos ministros
do Supremo, ou dos deputados e senadores, ou quantos filhos ou filhas tem
o presidente. Serão apenas “nossos representantes”, trabalhando para nós, sendo
pagos com nosso dinheiro, cumprindo um contrato temporário, renovável caso
apresentem bons serviços para o bem comum. Uma democracia tão morna e sem sal
quanto o seu propósito, que é o de viver e deixar viver, com liberdade,
conforto e segurança, todos os membros de sua comunidade.
Daniel Medeiros - doutor em Educação Histórica
e professor no Curso Positivo
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