As cadeiras globais de poder passam por um dos maiores desafios recentes. Depois do surgimento de governos conservadores na esfera externa, o que enfraqueceu a capacidade aglutinativa dos organismos internacionais, estamos diante de um período de acomodação destas forças políticas. Deste cenário emergirão as novas estruturas de poder que devem reger os rumos deste século. É preciso acompanhar este processo com extrema cautela.
É neste ponto que se insere a importância da eleição presidencial norte-americana
deste ano. Isto porque os Estados Unidos da América servem de elemento
balizador do sistema democrático ocidental, exercendo influência direta e
indireta sobre os caminhos trilhados em outros países. A guinada na política
externa executada por esta Casa Branca foi sentida em todos os cantos do mundo,
alterando os alicerces de poder como conhecemos. É preciso saber se esta
mudança veio para ficar.
Trump chegou ao poder atacando as bases do sistema interdependente externo,
baseado na força e ingerência do multiculturalismo em escala global. Ao se
retirar de organismos internacionais e questionar a capacidade destes em
apresentar soluções, sugere uma reforma nos mecanismos do sistema
internacional, valorizando o papel do estado nação como elemento essencial das
relações externas.
Assim, a escolha política que emergirá das urnas americanas tem a capacidade de
gerar efeitos diretos na acomodação de poder global, reafirmando os passos
dados por Trump ou realinhando os caminhos com Biden. Qualquer uma das opções
gera reflexos diretos no grau de influência que ainda podem exercidos por China
e Rússia na arena internacional. Somam-se neste quesito também os naturais
desdobramentos no Oriente Médio e até na América Latina, que hoje sofre pressão
de Pequim e Moscou na tentativa de ampliar sua influência.
Se existe dúvida em relação a quem ocupará o Salão Oval, no Capitólio, o
poderoso parlamento dos Estados Unidos, já é possível prever uma vitória
democrata. A Câmara de Representantes, que já está nas mãos do partido de
Biden, certamente deve permanecer assim. No Senado as chances de uma virada
democrata também são grandes. Diante das disputas que estão em jogo, é provável
que três a quatro vagas troquem de lado e os republicanos percam sua maioria.
No que tange a Casa Branca, a situação para os democratas se mostra também mais
confortável, uma vez que as chapas para o parlamento impulsionam os candidatos
nacionais em alguns distritos. Além disso, a performance do Presidente tem sido
muito criticada no que tange a economia, saúde, tensões raciais e distúrbios
civis. A imagem da figura pública presidencial se desgastou com os últimos
episódios políticos.
A estratégia também é um ponto crucial deste jogo. Diante do modelo eleitoral
norte-americano a eleição acaba sendo disputada realmente apenas em alguns
estados, pois na maioria dos colégios eleitorais o resultado está definido. Em
2016, Trump venceu por pequena margem em estados-chave, como Pennsylvania
(0,72%), Michigan (0,23%), Wisconsin (0,77%) e Flórida (1,2%). Em todos estes
Biden lidera com maioria superior a 5%. Se houver virada nestes locais, o
resultado da eleição certamente será outro. Por fim, Ohio, o estado que
reproduz em suas fronteiras as mais fiéis características do país, onde Trump
venceu em 2016, também virou para lado de Biden.
A realidade parlamentar deixa claro que, caso reeleito, Trump não terá vida
fácil no Congresso e que Biden terá respaldo para operar uma virada substancial
nas políticas do país, a começar pela área externa, resgatando a agenda de
Barack Obama. Caso o democrata seja eleito, podemos esperar o retorno dos
Estados Unidos a fóruns e organismos como o Acordo de Paris, Unesco, OMS,
reaproximando-se também da agenda de distencionamento com Cuba.
A América Latina ocupará um lugar secundário no debate, mas está no radar de
ambos partidos. O alcance de Rússia e China na região de maior influência
natural dos Estados Unidos não agrada Washington. Tanto a aproximação de Moscou
via Caracas, como a sinodependência econômica impulsionada por Pequim, são
temas importantes de qualquer Presidente que esteja ocupando o Salão Oval a
partir de 2021. Este é um movimento que de uma forma sutil leva os
latino-americanos mais uma vez para os importantes debates que permeiam as
relações externas.
Diante disso é importante o Brasil estar atento e mover-se com inteligência.
Nosso país possui canais com os dois lados do espectro político, algo que
aprendi a cultivar durante meus anos em Washington. Ao introduzir o futuro
governo brasileiro para os decision makers do lado republicano durante visita
em 2018, sabia que também era importante fortalecer relações amistosas com os
democratas. Um caminho que podemos abrir da maneira certa, pelos canais
corretos, assim como operamos com êxito dois anos atrás.
Certamente a realidade que emergirá desta eleição norte-americana terá reflexos
profundos e ajudará a desenhar as novas estruturas de poder. A consolidação da
visão de mundo exposta por Trump impulsiona uma leitura que certamente
continuará a reordenar os mecanismos internacionais. Biden representa o retorno
a um modelo multilateral onde as agendas globais recobram seu fôlego.
O Brasil, que se aproximou dos americanos neste governo, possui uma posição
estratégica. Na mesa estão temas sensíveis, como agricultura, comércio e as
novas redes de tecnologia. Ao agregar os temas, de forma inteligente, será
possível criar, dos dois lados do espectro político, parcerias que sejam
benéficas para as duas nações.
Márcio Coimbra - coordenador
da pós-graduação em Relações Institucionais e Governamentais da Faculdade
Presbiteriana Mackenzie Brasília, Cientista Político, mestre em Ação Política
pela Universidad Rey Juan Carlos (2007). Ex-Diretor da Apex-Brasil.
Diretor-Executivo do Interlegis no Senado Federal.