Durante anos, ela viveu de palavras. Moldava frases
igual artesão esculpe madeira: com paciência, com dor, com alma. Seus
personagens tinham peso; seus silêncios, voz; suas histórias, carne.
Podia-se dizer que seus escritos produziam algo
nutritivo à alma. Não continham apenas pão. Havia bife no interior daqueles
sanduiches ensandecidos.
Era escritora; dessas da antiga, que escrevem mesmo
quando ninguém lê.
Ela não lembrava do seu nome anterior, mas às vezes
sonhava com lugares que nunca visitou: uma vila à beira-mar onde o vento trazia
cheiro de sal e tristeza.
Diziam que reencarnação era crença dos que têm medo
do fim. Mas para ela era esperança dos que já viveram demais. Algo dentro dela
sussurrava que o tempo não era uma linha reta, mas um círculo.
Na vida atual, buscava sentido nos encontros: nas
amizades instantâneas, nos olhares que duravam um segundo, mas carregavam
séculos. Acreditava que tudo tinha um porquê, mesmo que esquecido; que
enterrado na poeira de outra existência.
Talvez tivesse sido mãe, guerreira, poetiza ou algo
mais simples: uma lavadeira que cantava à beira do rio. Não importava.
No fundo, ela sabia: a morte não era um fim. Era só
intervalo entre dois atos; e a alma, essa inquieta viajante, sempre encontra o
caminho de volta ao palco da vida.
E era na literatura que encontrava uma maneira de
deixar a crença metafísica se tornar uma engrenagem sensível e poderosa. Ao
criar personagens que retornam em diferentes épocas, em corpos distintos, mas
com fragmentos de alma que resistem ao tempo, ela desenhava uma tapeçaria
emocional que atravessava séculos e, nessa travessia compartilhada com os
leitores, contava a sua própria história que estava ali encoberta na intimidade
do inconsciente.
Mas o mundo mudou. Vieram as máquinas. Rápidas,
incansáveis, versáteis. Produziam contos, ensaios, romances em segundos. Sabiam
imitar estilos, repetir fórmulas de sucesso, prever gostos. E o que antes era
arte virou algoritmo.
Ela resistiu. Tentou provar que alma não se
programa, que há coisas que só o humano compreende: a hesitação do amor, a
culpa silenciosa, o vazio de uma perda. Mas as editoras se renderam aos dados,
os leitores aos atalhos. Sua voz, outrora buscada, tornou-se obsoleta; lenta
demais, profunda demais.
Com o tempo, não havia mais por quem escrever. Nem
para quê. Restou-lhe apenas o silêncio e uma folha em branco, onde escreveu,
sem pressa, seu último parágrafo. Não para um leitor, não para um algoritmo.
Para si mesmo.
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