PNAS, diferentes linhagens de amebas e de ancestrais de plantas, algas e animais já estavam estabelecidas no período Neoproterozoico e resistiram aos dois eventos de glaciação que congelaram o planeta
Há 800 milhões de anos, muito antes da
formação do supercontinente Pangeia, a Terra era mais diversa do que sugere a
teoria clássica. Ao reconstituir a árvore da vida, a partir da história
evolutiva de amebas e depois de ancestrais de algas, fungos, plantas e animais,
pesquisadores brasileiros conseguiram criar um cenário com várias linhagens de
diferentes espécies habitando o planeta naquele período.
As descobertas, publicadas na
revista Proceedings of the National Academy of Sciences of the United
States of America (PNAS), indicam que diversas linhagens de eucariontes
(seres vivos cujas células possuem núcleo delimitado) surgidas há 1,5 bilhão de
anos se diversificaram e se estabeleceram durante o evento de oxigenação do
Neoproterozoico – quando, há 800 milhões de anos, a geoquímica planetária
permitiu a oxigenação profunda dos oceanos.
O estudo mostra também que a
diversidade de amebas e ancestrais de plantas, algas, fungos e animais
sobreviveram até mesmo ao período Criogeniano (entre 790 e 635 milhões de anos
atrás), que contou com dois eventos de glaciação – quando o gelo dos polos
cobriu todo o planeta por cerca de 100 milhões de anos (fenômeno conhecido como
Terra Bola de Neve).
“O paradigma que tínhamos para
o Neoproterozoico era de que não havia quase nada no planeta, apenas uma ou
outra espécie de bactéria e protista. Porém, nos últimos 15 anos, foram sendo
identificados fósseis de seres unicelulares, eucariontes e heterotróficos [que
não produzem o próprio alimento] em diversos lugares diferentes do planeta.
Esses fósseis datam de cerca de 800 milhões de anos [e são denominados fósseis
tonianos]. Tudo isso se junta ao nosso estudo, que reconstituiu a árvore da
vida e, por probabilística, identificou diversas linhagens bem estabelecidas de
ancestrais de amebas, animais, fungos e plantas há 800 milhões de anos. Isso
muda muito o nosso entendimento sobre como se deu a diversificação da vida na
Terra”, conta Daniel Lahr, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo
(IB-USP) e autor sênior do artigo.
Desse modo, o trabalho antecipa
em cerca de 260 milhões de anos os eventos de diversificação em massa no
planeta, ou seja, muito antes da chamada revolução do Cambriano, ocorrida há
540 milhões de anos, quando houve uma inexplicável explosão de novas espécies
pluricelulares. Nesse período, a Terra – habitada por seres como os trilobitas,
braquiópodes e graptólitos – já apresentava um clima moderado, úmido e nenhuma
formação de gelo que pudesse ser caracterizada como geleira.
“Mesmo com todas as alterações
climáticas sofridas no Neoproterozoico, a diversidade dos eucariontes
persistiu, mostrando um poder de adaptação acima do esperado. Isso é
importante, pois o nosso trabalho de reconstituição de árvore filogenética
serve também de base para estudos de reconstrução paleoclimática”, conta.
“Algo inusitado é que todas as
amebas Arcellinida desse período eram de água salgada e, atualmente, todas têm
a água doce como hábitat. Trata-se de uma mudança comum de acontecer ao longo
da história da Terra, mas, no caso dessas amebas, a mudança ocorreu com todas
as linhagens. Isso mostra, mais uma vez, a capacidade de adaptação desses seres
vivos”, afirma Lahr.
No trabalho, os pesquisadores
usaram técnicas inovadoras para a reconstrução da árvore de relações de
parentesco (filogenética) das tecamebas (Arcellinida) e, a partir disso,
calibraram a árvore da vida, identificando ancestrais de plantas, fungos, algas
e animais, por exemplo.
“A base para criar essa
reconstituição foram as tecamebas e, a partir desse trabalho, fomos conseguindo
visualizar outros seres vivos que antecederiam outros grupos e que também
estariam presentes e diversificados naquele período da Terra, há 800 milhões de
anos", explica Lahr à Agência FAPESP.
Vale destacar que as tecamebas
representam o maior grupo do clado (conjunto de organismos originados de um
ancestral comum) Amoebozoa, uma grande linhagem de seres que se locomovem por
projeções celulares chamadas pseudópodes. Estudo anterior do grupo da USP
permitiu estruturar a árvore molecular das tecamebas (leia mais em: agencia.fapesp.br/29929).
“Com auxílio de matemática
probabilística conseguimos determinar a morfologia de tecamebas ancestrais [a
partir de dados genéticos de espécies que vivem hoje na Terra] para depois
comparar com a morfologia dos fósseis. Neste estudo, identificamos linhagens
ancestrais das tecamebas e uma maior diversificação desses organismos no
Neoproterozoico”, relata Lahr.
No estudo publicado em PNAS,
os cientistas avançaram no entendimento de como era o planeta há 800 milhões de
anos a partir do uso dessas linhagens de tecamebas como pontos de calibração
para a árvore da vida com plantas, algas, fungos, animais e seus antepassados.
A pesquisa recebeu apoio da FAPESP por meio de um Auxílio à Pesquisa – Regular e de uma Bolsa de Doutorado.
“A partir dessa ampliação da
árvore da vida, foi possível obter descobertas interessantes sobre um período
da história do planeta que ainda era muito obscuro. Com a calibração da árvore
a partir do estudo filogenético das tecamebas, conseguimos duplicar a
quantidade de informação sobre os eucariontes no Neoproterozoico. Nossos dados
mostram que é nesse momento que começa a surgir uma diversidade grande de
linhagens, uma delas é a dos animais, outra dos fungos e, possivelmente, as
plantas”, diz o pesquisador.
Como explica Lahr, o trabalho
se baseia em uma técnica inovadora denominada single-cell
transcriptomics, que permite sequenciar todo o transcriptoma de uma única
célula (ser unicelular). O transcriptoma é a parte do genoma que está sendo
expressa e o seu sequenciamento permite que os cientistas retrocedam na linhagem
evolutiva, identificando espécies que viveram no passado.
"Antes dessa técnica só
era possível obter o transcriptoma de seres vivos unicelulares que vivem em
cultura, ou seja, menos de 1% da diversidade dos microrganismos. Foi a partir
dessa inovação que fomos conseguindo estruturar a filogenia do grupo das
tecamebas como um todo. É um grupo bem diverso e se mostra interessante para
iluminar esses períodos da história da Terra, por terem registros fósseis com
os quais podemos fazer comparações. Fora isso, na árvore da vida, as amebas
estão mais próximas dos animais do que eles estão das plantas, o que nos
permitiu fazer calibrações importantes", diz.
O artigo Amoebozoan
testate amoebae illuminate the diversity of heterotrophs and the complexity of
ecosystems throughout geological time pode ser lido em: www.pnas.org/doi/abs/10.1073/pnas.2319628121.
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/ha-800-milhoes-de-anos-planeta-terra-era-mais-diverso-do-que-se-imaginava-aponta-estudo-brasileiro/52419
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