Trabalho foi focado em acolhimento para comunidades e treinamentos para profissionais
Ao passar pelas ruas próximas do Rio Taquari no
município de Encantado, no Rio Grande do Sul, é possível compreender melhor a
dimensão da tragédia. No caminho, casas destelhadas e pilhas de entulhos se
misturam às poucas construções que se mantiveram em pé. Elas abrigam moradores
sem vizinhos. Não se escutam vozes. Só é possível saber que há pessoas ali por
causa das roupas secando nos varais, aproveitando um atípico dia de sol no
inverno.
Quase três meses depois das
enchentes extremas que acometeram o estado, se transformando em uma das maiores
catástrofes socioambientais já ocorridas no Brasil, o rastro de devastação nas
cidades gaúchas é explícito. Já os danos para a saúde mental não são tão
visíveis e podem ter muitos efeitos na vida cotidiana.
“Uma senhora contou que, no dia da chuva, disseram
para ela ir para um lugar mais alto porque a região iria alagar. Ela colocou
algumas coisas numa mochila e foi, mas havia muitas informações desencontradas
e ela ficou sem saber o que fazer”, relata a psicóloga Simone Dutra Fritscher,
que atua nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) de Encantado.
Simone explica que a mulher, então, pensou em ligar
para a filha e se lembrou de que o celular estava na mochila, mas já não sabia
mais onde a tinha deixado. “Até hoje ela não achou a mochila. Aí tu pergunta
se a pessoa está bem e ela responde que sim, que está tranquila, mas não
entende o porquê de esquecer as coisas, de estar irritada. Ouvimos milhares de
relatos sobre as enchentes, daria para fazer um filme”, diz.
São inúmeras as consequências
de saúde mental para as populações afetadas pela emergência. Segundo o
coordenador de saúde mental e apoio psicossocial do projeto de Médicos Sem
Fronteiras (MSF) no Rio Grande do Sul, Herbert de Matos, crises de ansiedade,
pânico e depressão estão entre os sintomas mais comuns.
“Esse cenário é esperado nos primeiros meses após o
evento traumático, é como um processo de luto recente. Para lidar com a
situação, iniciativas de autocuidado e apoio mútuo são fundamentais para os
profissionais que atuam na linha de frente. Para os moradores, os espaços de
interação comunitária são cruciais”, explica ele.
MSF apoiou autoridades locais
na elaboração e implementação dessa resposta coordenada para as demandas de
saúde mental e apoio psicossocial nas cidades de Cruzeiro do Sul, Encantado,
Lajeado e Roca Sales, no Vale do Taquari, e em Canoas e Eldorado do Sul, na
região metropolitana de Porto Alegre. O trabalho foi desenvolvido em três eixos
principais: acolhimento das comunidades, treinamento de profissionais e criação
de protocolos para resposta em saúde mental durante emergências.
De acordo com a coordenadora
do projeto de MSF no estado, Irene Huertas, comunidades acolhidas e
fortalecidas se apoiam emocionalmente, contribuindo para a prevenção de
impactos mentais mais severos após a fase aguda da emergência. “Por esta razão,
nosso foco está tanto no cuidado dos profissionais, como nas populações
atingidas”, relata, ressaltando que as duas regiões apresentam desafios
diferentes. No total, cerca de 500 pessoas, entre profissionais e membros das
comunidades, participaram das atividades de MSF.
Esta é a terceira vez em menos de um ano que os
municípios do Vale do Taquari enfrentam enchentes de grandes proporções. Para
Irene, as equipes de saúde desta área estão mais preparadas para lidar com
emergências, mas, ao mesmo tempo, é possível notar o cansaço da população,
novamente atingida, mas agora em um momento de reconstrução e com um fator
novo: os deslizamentos.
Gisele Dhein, moradora de Lajeado, participou de
treinamentos realizados por MSF este ano e em 2023, quando a organização
implementou um projeto
de saúde mental durante as inundações causadas por um ciclone no estado.
Segundo ela, que é psicóloga e professora universitária, as atividades foram
fundamentais para acolher e capacitar as equipes, “oferecendo ferramentas de
fortalecimento e enfrentamento coletivos”.
Em Canoas, cidade a 45 quilômetros da capital
gaúcha onde MSF ofereceu
cuidados médicos em um abrigo desde o começo da emergência, os desafios se
apresentaram de uma maneira um pouco diferente. As enchentes foram uma surpresa
para os moradores dessas áreas, essencialmente zonas urbanas, deixando um
impacto emocional profundo em pessoas que nunca haviam pensado em abandonar
suas casas ou em atender pessoas nesta situação.
“Ninguém estava preparado para
lidar com uma emergência como essa, tivemos que nos adaptar rapidamente ao alto
número de pacientes e para enfrentar os efeitos na saúde mental dos próprios
profissionais. Muitos deles também sofreram perdas. Na verdade, todos foram
afetados direta ou indiretamente”, argumenta Maiara
Mundstock, gestora responsável pelas unidades de saúde da Mathias Velho, o
maior bairro do munícipio. Ela foi uma das participantes dos treinamentos
realizados por MSF em Canoas. Além da área de saúde, profissionais de educação
e assistência social participaram dos grupos de acolhimento e capacitação.
Professoras da Escola Municipal Tiago Wurth e a
diretora Vanice Lopes da Costa estão entre eles. No local, os vestígios da
emergência ainda são nítidos. A força tarefa montada entre voluntários e o
Exército para apoiar a central improvisada de distribuição de doações continua
lá. Mas, como aquelas casas de Encantado que se mantiveram em pé e buscam
voltar à rotina com as roupas secando no varal, pouco a pouco a situação também
vai avançando na escola de Canoas.
“Para a gente é fundamental
esse apoio de MSF às nossas professoras, para que estejam bem, e assim possamos
apoiar as crianças na volta às aulas”, ressalta. Ela espera que o retorno às
atividades letivas seja mais um passo para que a comunidade possa continuar,
com um pouco mais de leveza, sua caminhada de reconstrução. “Estamos preparando
uma recepção diferente, alegre”, conta emocionada Vanice.
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