Estamos no mês em que se comemora o
Dia Mundial do Consumidor, o qual, como é consabido, teve origem
(tradicionalmente falando) em mensagem enviada em 15 de março de 1962 pelo
então presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, ao Congresso, com os dizeres
“Todos Somos Consumidores”. Ao longo das décadas seguintes, a tentativa de
materialização desta afirmação passou pela promulgação da Carta dos
Consumidores (1973, Conselho da Europa); da Resolução 39/248, de 1985, pela
Organização das Nações Unidas (ONU); e, no Brasil especificamente, da previsão
constitucional de proteção ao consumidor (Constituição Federal de 1988: artigo
5.º, inciso XXXII, artigo 170, V) e do Código de Defesa do Consumidor (Lei
8.078), em 1990.
Passados 61 anos (1962-2023), alguns
questionamentos são necessários: que sabores exalam produtos e serviços
colocados no mercado de consumo? Qual o terroir?
Há notas de discriminação racial?
Ora, terroir, de acordo com o “Guia Essencial do Vinho – Wine Folly” é palavra de origem francesa
usada para descrever como o clima de uma determinada região, os solos, os
aspectos do terreno e as práticas tradicionais de vinificação afetam os sabores
dos vinhos, tendo-se, evidentemente, o fator humano como fundamental para o
produto final colocado à venda.
Vejamos então, ainda que brevemente,
no modo degustação, o tratamento de setores do mercado quanto ao tema da
discriminação racial na produção e oferta de produtos e serviços.
No campo Bebidas, para começar
onde faz mais sentido o termo terroir,
notícias recentes dão conta de que, em 28 de fevereiro último, 207 funcionários
baianos foram libertados, pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), de
vinícolas de Bento Gonçalves (RS), os quais estavam trabalhando em regimes
análogos à escravidão e, segundo seus próprios relatos, foram extorquidos,
ameaçados, agredidos e torturados com choques elétricos e jatos de spray de pimenta.
O vereador Sandro Fantinel, em
comentário ao total desprezo à vida humana acima narrado, afirmou que “a única
cultura que os ‘baianos’ tem é viver na praia tocando tambor’. Bom mesmo, nos
dizeres do par(a)lamentar, seria contratar brancos e limpinhos argentinos. Qual
o Estado com presença de mais pretos e pardos no Brasil? Isso, a Bahia, com
81,1%. Percebem as notas de discriminação racial?
Já no setor Produtos de beleza,
alguém parece ter avisado aos fornecedores que a maioria da população
brasileira é composta de pretos e pardos (são 56%, conforme IBGE 2019): isto
porque, depois do pioneirismo da cantora Rihanna, que em 2019 lançou uma linha
de maquiagem com mais de 40 tons de base, começou a ser vendido no Brasil e no
mundo produtos para a pele parda e preta de modo especializado.
Mas, como o racismo é estrutural (expressão do atual Ministro dos
Direitos Humanos do Brasil, Silvio Almeida) e não se resolve de um dia para o
outro, também foi noticiado amiúde, no último dia 28 de fevereiro, que em
reunião na Anvisa com a participação de fornecedores de pomadas modeladoras, as
quais estão proibidas a comercialização desde janeiro deste ano por terem causado
cegueira e outros problemas de saúde em consumidores, os referidos
representantes das marcas alegaram, em suma (está gravado, é fato), que “os
efeitos adversos causados pelas pomadas estariam ligados a falta de higiene das
tranças e cabelos afro”. Estas notas fortes de racismo em forma de condutas de
discriminação racial só demonstram que o terroir destas empresas segue
banhado no sangue na escravidão.
Só um último gole. No que diz respeito
a Instituições
financeiras e suas
relações “igualitárias e personalizadas” com clientes ao redor do mundo, o
ambiente continua a se mostrar campo fértil para exalação de notas de
discriminação racial. Dois exemplos: i) Notas de redlining: foi noticiado na imprensa
internacional, no dia 2 de março deste ano, que o banco Park National Bank fez acordo de R$ 47 milhões
nos Estados Unidos da América após negar crédito a bairros negros no Estado de Ohio
entre os anos de 2015 e 2021 — é este o significado de “atendimento
personalizado ao cliente?”; ii) Notas de exclusão: no Brasil, em dezembro de
2022, sentença condenou um “bancão” a pagar indenização por danos morais no
importe de R$ 10 mil reais, por ter obrigado cliente a ficar descalço durante
atendimento. Consta da referida decisão: “o ilícito do réu não está no fato da
porta ter travado o ingresso do autor, mas dos vigilantes não terem permitido
sua entrada mesmo após constatado que o metal das botas acionou a trava de
segurança e se mostrado indiferentes (...)” (processo n.
0008150-40.2022.8.03.0001).
Se é sabido por todos que a história é
contada pela pena de vitoriosos com o sangue dos vencidos; parece ser sabido de
todos também que produtos e serviços consumidos no Brasil e no mundo possuem,
no mais das vezes, um terroir impregnado de discriminação
racial. Até quando?
Jonas Sales Fernandes da
Silva - Especialista em Direito do Consumidor. Advogado, Professor e Consultor
Jurídico.
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