Eu nem sabia da existência ou do canal do influencer digital Jesse Koz e seu cachorro, o Golden Retriever Shurastey (uma brincadeira com a música do The Clash – Should I stay or Should I go? – Shurastey ou Shuragow?). O rapaz vendeu tudo o que tinha, comprou um Fusca 78 e saiu pelo mundo com a cara e a coragem, rodando quase vinte países com seu incansável companheiro, Shurastey.
Na sua última aventura, estava indo na direção do
Alasca quando bateu seu carro de frente com uma SUV. Jesse e Shurastey morreram
instantaneamente. As fotos dos dois em vários lugares do planeta encheram a
internet nos dias seguintes. Foi aí que eu, como muita gente, tomei
conhecimento da aventura dos caras. A imagem sorridente do Jesse do lado do
infinitamente de boa Shurastey doeu no coração.
A dupla do balneário Camboriú vai ser homenageada
com um Memorial em pista de passeio de cães da cidade. Uma homenagem aos laços
profundos e ancestrais entre o homem e seu fiel companheiro.
Um cara falou, em um Congresso de Neurociências,
que os cachorros não amam os homens. Tem esquemas cognitivos de afiliação e
obediência, mas não é amor. Quase perguntei se a mãe gostava dele ou tinha
laços culturais de afiliação e cuidados com a transmissão do genoma. Que
vontade de pagar de bacana. Ou de não entender de amor, nem de dogs.
Cachorros tem uma prega na testa que os lobos não
tem, por isso olham de um jeito quase humano. Já deve ter ficado claro aos
leitores que eu sou super cachorreiro, e escrevo essas mal tecladas palavras
com as duas bebês aqui perto. Jackie Tequila, a mais velha, me olha com olhar
quase humano quando está na hora da comida ou do rolê na rua. Bella, a caçula,
foi adotada de um lar onde sofreu alguns abandonos de quintal e prováveis
descuidos. Ela é medrosa e comemora a nossa volta para casa como se estivesse
vendo o Papai Noel.
A psiquiatra Nise da Silveira, nos anos 40 do
século passado, introduziu nos cuidados com os pacientes psiquiátricos a
presença fiel e serena dos cachorros de rua. Os pacientes melhoravam de maneira
surpreendente, já que eram entendidos como pacientes crônicos e incuráveis. Até
o final de sua vida, Nise sempre esteve cercada por seus cachorros. O que
diriam os haters e os supremacistas de hoje dessa infinita delicadeza entre
homem e animais?
Os dogs tem um tipo de afetividade muito parecida
com os bebês. Já vi muita gente com Depressão, em quadros mais ou menos graves.
Temos o instinto quase coletivo de afastamento de uma pessoa que está
deprimida. Nossos instintos entendem esse estado de baixa energia como uma
infecção ou algo perigoso. Só crianças e cachorros fazem o certo com quem está
deprimido, que é ficar perto e encontrar uma ressonância afetiva. A
Neurociência tem um nome para isso, que é a Ressonância Límbica. É a capacidade
que os mamíferos tem de entrar em uma frequência semelhante, do ponto de vista
do afeto, com outro mamífero. A capacidade de estar perto e tentar ajudar
alguém que está em dificuldades. O amor do dog, como falou o Neurocientista,
não é igual ao humano, não é processado cognitivamente. É antes uma capacidade
de entrar em ressonância com a emoção e o estabelecimento de uma proximidade, de
um Tamo Junto que os mamíferos acionam quando o grupo precisa de proteção mútua
ou cuidado.
Bella me emociona particularmente, por ter visto
nela a mesma cura amorosa que eu vejo com os pacientes. Bella tinha uma espécie
de reação de Pânico com gritos, pessoas novas ou homens desconhecidos. Sua
reação de medo sempre foi o de tremores e perda de controle da urina. Com o
passar do tempo, foi mudando de um tipo de vínculo Inseguro para Seguro, hoje
tem mais confiança em seu ambiente e na vida. Na prática clínica, é também
longo o caminho para cicatrizar feridas e refazer o vínculo com a vida. Parar
de se castigar pelo o que os outros fizeram. Parece estranho de se pensar, mas
preste atenção quanta gente se odeia pelos erros que outras pessoas cometeram,
sobretudo nos anos iniciais de suas vidas.
Olho para a foto de Jesse Koz e Shurastey e sinto
uma pontada pela perda de caras que eu não conheci, mas também pelo mistério de
terem vivido juntos os momentos mais incríveis de suas vidas e terem morrido
também juntos. Parecem quase a mesma pessoa.
(Termino o texto com uma lágrima de canto. Bella
chega perto e me dá uma lambida).
Marco Antonio Spinelli - médico, com mestrado em
psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiano
e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”
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