A Recuperação Judicial, prevista na lei 11.101/2005 ora em vigência, pode ser um importante instrumento de salvaguarda para o produtor rural que estiver em crise econômico-financeira, tal qual vivenciada em decorrência da Covid-19, para que evite o encerramento precoce de suas atividades, e sofra sérias consequências de uma inadimplência não resolvida, inclusive com provável perdimento de bens.
A Lei 11.101/2005 possibilita à empresa que está
passando por uma crise econômico-financeira a oportunidade em se manter ativa e
se reestruturar. Uma vez ajuizada, a devedora sai da pressão exacerbada ,
geralmente exercida por parte de credores mais afoitos, sendo que neste
procedimento poderá promover o pagamento de seus credores dentro de suas
possibilidades; manter empregos, pagar impostos, enfim, retornar ao mercado de
atuação reestruturada, competitiva e participativa na economia.
Uma questão controversa, que é muito enfrentada
pelos tribunais: pode o produtor rural ajuizar ação de recuperação judicial sem
que tenha completado os dois anos consecutivos de inscrição no registro público
de empresas mercantis? Em caso afirmativo, implicará o aumento de restrições de
acesso ao crédito, por parte dos produtores rurais, uma vez que as linhas
disponíveis para o setor são mais vantajosas?
Para que o produtor rural possa se valer dos
benefícios de uma recuperação judicial, terá que estar equiparado a
empresário/sociedade empresária, sendo certo que o artigo 971 do Código Civil
concede a permissão para a mutação do regime civil para empresarial. O produtor
rural também deverá estar inscrito no registro público de empresas mercantis, e
comprovar que exerce a atividade rural com regularidade, por um período mínimo
de dois anos consecutivos, antecedentes ao pedido de recuperação judicial.
O Código Civil, em seu artigo 966, considera
empresário “aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada
para a circulação de bens ou de serviços”, sendo obrigatória a inscrição no
Registro Público de Empresas Mercantis, conforme previsto no artigo 967 do
Código Civil.
No caso do produtor rural, o registro em questão
não é obrigatório, posto que o Código Civil, em seu artigo 970, assegura que a
lei deverá “conceder tratamento diferenciado e simplificado ao empresário
rural, no que se refere à inscrição e aos efeitos que decorrem”, portanto
a atividade ruralista sem registro é considerada perfeitamente legítima.
Cabe, portanto, ao produtor rural promover a
sua inscrição antecedentemente ao pedido de recuperação judicial, ato que o
equiparará a empresário.
Constata-se que a inscrição do produtor rural no
Registro Público de Empresas Mercantis é optativa, e se realizada será
meramente declaratória, e não constitutiva de direitos.
O entendimento que vem sendo dispensado pelo
Superior Tribunal de Justiça, em julgamentos desta matéria, é no sentido de que
pode o produtor rural ter a sua inscrição no registro próprio há menos de dois
anos à data do ajuizamento da recuperação judicial, porém terá que sempre
comprovar o exercício da atividade rural por no mínimo dois anos.
Não se pode confundir o ato da inscrição do
produtor rural no registro competente com a comprovação do exercício regular da
atividade rural, sendo o primeiro ato de natureza declaratória, e não
constitutiva de direitos; e o segundo, concessão legal prevista no
art. 970 do Código Civil, que dá ao produtor rural a opção em se registrar ou
não.
O caput do artigo 48 da Lei 11.101/2005 exige que o
devedor, no momento do pedido de recuperação judicial, exerça regularmente suas
atividades há mais de dois anos, cabendo ao produtor rura,l no caso, a
respectiva comprovação, pouco importando se tem o registro com
menos de dois anos à data do pedido da recuperação.
Extrai-se, por exegese interpretativa, que as
dívidas contraídas pelo produtor rural antecedentes ao pedido de recuperação,
igualmente a qualquer empresa devedora requerente da recuperação judicial,
estarão todas efetivamente sujeitas e incluídas no “Plano de Recuperação”,
ressalvadas as exceções previstas na Lei 11.101/2005.
O atual entendimento concedido pela 4ª Turma do STJ
(REsp-MT 1.800.032) está em harmonia à jurisprudência do TJSP , TJPR e outros
tribunais estaduais, divergindo desta posição especialmente os TJMT
e TJGO.
Argumentos e fundamentos divergentes à posição da
4ª turma do STJ, tais como “ausência de boa-fé objetiva” na
contratação de empréstimos ao setor rural, cuja concessão de crédito é feita
sob regimes diferenciados; que, a recuperação judicial nestas circunstâncias,
estará prestigiando a prática de fraudes; e que estes procedimentos implicarão
na diminuição ou recrudescimento da oferta de crédito ao setor ruralista,
com todo o respeito que são merecedores os prolatores, não podem prevalecer.
Primeiro, por força do princípio constitucional da
isonomia, pois, não se parece certo e justo, excluir do contexto da vigente Lei
11.101/2005 o produtor rural, que tem uma atividade empresarial como qualquer
outra, mas que não encontra outros meios para enfrentar crises, senão pela via
da recuperação judicial, na qual receberá os benefícios para poder se
reestruturar.
Segundo, o produtor rural uma vez registrado no
órgão próprio estará equiparado a “empresário” ou “sociedade empresária” e, por
isso, passará a atender o disposto no artigo 1º da Lei 11.101/2005, sendo que a
atividade rural sem registro não pode ser considerada irregular, pelo
contrário, tem o amparo no art. 970 do Código Civil, razão pela qual não
se verifica óbice legal o ajuizamento da recuperação judicial do produtor
rural, com a inscrição registral em período inferior a dois anos.
Terceiro, havendo indícios de fraudes, cumpre
sempre serem punidas, sendo que o judiciário detém competência e mecanismos
para combatê-las. Em caso de indícios de fraudes à data da distribuição do
pedido, tem-se a “vistoria prévia” a ser realizada; e, no curso do processo de
recuperação, a perícia técnica contábil e outras poderão apurar, a qualquer
tempo, eventuais práticas de fraudes ou tentativas. Aos credores, assim como ao
Ministério Público, cabe a fiscalização de quaisquer atos de desvio de
finalidade que forem detectados.
Quarto: não se acredita em um recrudescimento de
fornecimento de crédito ao setor rural somente por conta de alguns produtores
rurais terem requerido a recuperação judicial na qualidade de “empresários”
equiparados para esta finalidade. Não se pode conceber que agentes financeiros
forneçam empréstimos vultosos sem as devidas cautelas cadastrais, garantias, ou
que desconheçam as possibilidades legais acima ventiladas.
Novas linhas de crédito rural estão ou deverão
estar disponíveis no mercado rural após a edição da Lei 13.986/2020, conhecida
com a Lei do Agro, que modificou substancialmente as disposições das
cédulas de crédito rural e promoveu inovações significativas no regime do
“patrimônio rural em afetação” (art. 7º) , com nova concepção de
“garantia rural” , a qual se vincula às Cédula Imobiliária Rural (CIR) e
Cédula de Produto Rural (CPR), cujo sistema de cobrança é
semelhante à alienação fiduciária de imóveis ( arts. 26 e 27 da Lei
9.514/97).
A Lei 13.986/2020 confere ao credor maior segurança
às operações financeiras no setor rural, mediante a constituição das garantias
às cédulas CIR e CPR, que se vinculam diretamente ao “patrimônio rural de
afetação“ que, uma vez instituído pelo proprietário, impedirá a alienação
imobiliária do bem afetado, assim como impedidas penhoras e demais constrições,
e idem não haverá a constituição de outras garantias supervenientes sobre
a propriedade afetada (art. 10, §3º, I, II).
A referida Lei do Agro também dá a segurança ao
credor em receber o seu crédito, sem se sujeitar à falência ou procedimentos de
recuperação previstos na Lei 11.101/2005 pois, expressamente prevê o
artigo 10º, § 4º inciso I , que as garantias de ”patrimônio de afetação” não
serão atingidos pelos efeitos da decretação da falência, insolvência civil ou
recuperação judicial do proprietário de imóvel rural.
Por último, há que ser mencionado o PL 6.229/2005
(com emendas), que modifica substancialmente a Lei 11.101/2005, aprovado pela
Câmara dos Deputados em tramitação no Senado Federal, que introduz novos
institutos, incorpora boa parte da jurisprudência criada ao longo de quinze
anos de vigência da lei e contém vários dispositivos de proteção aos
financiadores de créditos que são concedidos ao produtor rural,
dando o devido equilíbrio e segurança aos contratos financeiros do setor
ruralista. Contudo, há que se aguardar seja editado e sancionado na forma legal
para alargar os comentários a seu respeito.
Claudio Pedro de Sousa Serpe - advogado, pós-graduado pela Fundação Getúlio Vargas em Direito de Empresas e Economia. Atua na advocacia contenciosa judicial, nas áreas do direito civil, comercial e empresarial. Especialista em Recuperação Judicial.
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