Fique
em casa! Essa frase tem sido repetidamente anunciada desde o início da
pandemia, mas pouquíssimas pessoas conseguem imaginar o que esta determinação,
visando a contingência da disseminação do coronavírus, tem acarretado na vida
de milhares de mulheres não só brasileiras, mas de todas as
nacionalidades.
A
violência doméstica ocorre desde o início da história e a cultura machista é,
sem dúvidas, a grande causa do desacerto humano neste ponto. Durante a
Idade Média, a discriminação contra a mulher foi a mais cruel, mulheres eram
queimadas sendo acusadas de bruxaria, quando na verdade eram nada mais que
mulheres tentando ocupar espaço e respeito na sociedade, nesta época, para cada
dez bruxas queimadas na fogueira da Inquisição, um bruxo era queimado.
Ponto
mais recente na linha do tempo, demonstra que com a criação do Código Civil de
1916, foi instituído que a mulher deveria ter autorização do marido para
trabalhar, com o objetivo de proteger a família.
A
mulher durante toda a história, com exceção em algumas civilizações, era
reconhecida como propriedade do homem. Atualmente muitos homens ainda com
ideias retrógradas têm este entendimento, impedindo o desenvolvimento
intelectual, independência financeira e liberdade da mulher, violando muitas
vezes direitos fundamentais garantidos a todo ser humano como a igualdade, a
liberdade e a vida.
Com
o isolamento social devido à pandemia Covid-19, o número de casos de violência
doméstica denunciados aumentou consideravelmente, de acordo com dados do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) este aumento foi de 50% se comparado ao
mesmo período do ano passado e os casos de feminicídio no Brasil cresceram
22,2%, entre março e abril deste ano, em 12 estados do país, comparativamente
ao ano passado.
Este
considerável aumento se dá às condições enfrentadas devido à pandemia. A
instabilidade emocional - devido à redução da capacidade financeira gerada pelo
aumento do desemprego; o aumento excessivo do consumo de álcool e de outras
drogas pelos agressores; a permanência constante no mesmo ambiente que a
vítima; bem como a vulnerabilidade desta quando afastada da família e do seu
núcleo social devido ao isolamento são fatores potencializantes à agressividade
e o poder de controle sobre a vítima.
Por
conta disso, vários projetos e ações foram desenvolvidos visando a proteção da
mulher em tempos de pandemia. O Projeto Justiceiras idealizado pela Promotora
de Justiça Gabriela Manssur, desenvolvido com a união dos esforços do Instituto
Justiça de Saia, Instituto Nelson Willians e Instituto Bem Querer Mulher, como
também a Campanha Sinal Vermelho desenvolvida pelo Conselho Nacional de Justiça
– CNJ, são exemplos do engajamento da sociedade em defesa da mulher vitima de
violência doméstica.
O
Poder legislativo também tem se esforçado de forma desmesurada para aumentar a
proteção da mulher. Exemplo disso é a Lei 14.022 de 07 de Julho de 2020 que
alterou a Lei 13.979 de 6 de fevereiro de 2020, dispondo sobre medidas de
enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher e de
enfrentamento à violência contra crianças, adolescentes, pessoas idosas e
pessoas com deficiência durante a emergência de saúde pública de importância
internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
A
referida Lei garante a não suspensão de prazos processuais relacionados à
violência doméstica, o registro de boletim de ocorrência online ou por telefone
de emergência e adoção de medidas necessárias para atendimento presencial.
Quanto
à adoção de medidas necessárias para o atendimento presencial, a Lei
14.022/2020 enfatiza a obrigatoriedade em alguns crimes previstos no Código
Penal, como feminicídio (inciso VI do § 2º do art. 121), lesão corporal
(art. 129), ameaça praticada com arma de fogo (Art. 147), estupro (Art. 213 e
caput e nos §§ 1º, 2º, 3º e 4º do art. 217-A), entre outros. Assim também
nos crimes previstos na Lei Maria da Penha, como o descumprimento de medidas
protetivas de urgência ( art. 24-A), além do Estatuto da Criança e do
Adolescente e no Estatuto do Idoso, tudo conforme parágrafo 2º do artigo 3º da
referida Lei.
Nos
caso de crimes de violência sexual, a Lei 14.022/2020 garante a realização
prioritária do exame de corpo de delito quando se tratar de crime que envolva
violência doméstica e familiar contra a mulher e violência contra criança,
adolescente, idoso ou pessoa com deficiência, possibilitando ainda exame de
corpo de delito no local em que se encontrar a vítima, se houver a adoção de
medidas pelo poder público que restrinjam a circulação de pessoas.
A
alteração da Lei 13.979/2020 pela Lei 14.022/2020 foi de extrema necessidade,
para assegurar maior proteção às mulheres, mas de nada adianta a Lei se o
sistema não funciona. Ainda nos dias atuais, existem casos de mulheres que
sofreram violência e na delegacia foram aconselhadas a não fazer o Boletim de
ocorrência, ou quando fizeram o boletim de ocorrência foram obrigadas a voltar
para a casa onde se encontra o agressor porque sua cidade não dispõe de casa
abrigo para seu acolhimento. Além disso, em centenas de municípios faltam
delegacias especializadas e quando tem não existem funcionários suficientes e
preparados para dar conta da demanda.
O
problema da violência contra a mulher vai muito além da lavratura do boletim de
ocorrência e da obtenção da medida protetiva, e por isso é importantíssimo o
olhar do poder público para as deficiências existentes no sistema, desde o
atendimento à vítima até a implantação de locais de acolhimento com a estrita
vigilância do correto funcionamento destes lugares, incluindo atendimento
humanizado e eficiente.
O
combate à violência contra a mulher é uma causa urgente que deve ser abraçada
por toda a sociedade, exigindo maior envolvimento do Poder Executivo na busca
da devida aplicação das Leis que disciplinam o tema, pois somente quando as
diretrizes da legislação forem atendidas e implementadas com efetividade nas
diversas estruturas de atendimento da rede de proteção à mulher, teremos a
esperança de reverter este atual cenário alarmante e devastador que nos faz
perder milhares de mulheres por ano vítima de violência de gênero.
Mayra Vieira Dias - advogada sócia do escritório Calazans e Vieira Dias Advogados, lider do Projeto Justiceiras e Presidente do PTB –Mulher em Santos.
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